segunda-feira, 31 de outubro de 2022

4878) Drummond e o epigrama para Emílio Moura (31.10.2022)

 
 


Estou retomando os comentários do primeiro livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia, que comecei a comentar em 2010 (quando o livro estava completando 80 anos). Volto à carga hoje, aniversário do autor de A Rosa do Povo.
 
Drummond começou a poesia de forma discreta. Para consolo dos jovens poetas sem direito às manchetes ou às capas de revista, transcrevo abaixo o que diz a “Cronologia” da Obra Completa do poeta mineiro, organizada por Afrânio Coutinho para a Aguilar (2ª. ed., 1967):
 
1930. Publica Alguma Poesia (500 exemplares), sob o selo imaginário das Edições Pindorama, criado por Eduardo Frieiro. A edição é facilitada pela Imprensa Oficial do Estado, mediante desconto na folha de vencimentos do funcionário. Amigos oferecem-lhe um jantar comemorativo, em que é saudado por Milton Campos.
 
(Meu primeiro livro de poesia, de 1980, teve tiragem de 300 exemplares. O segundo, de 1982, vendeu 3 mil ao longo de alguns anos.)
 
Drummond começou assim, timidamente poeta, amparado e incentivado pelos amigos. A poesia brasileira sempre foi um lago em câmera lenta. Joga-se uma pedra no meio do caminho, ou melhor, no meio do lago, e ali começa a surgir um círculo vagaroso encompassando umas 100 pessoas, daí a pouco chegam a mil, quem sabe daí a mais uns anos esses leitores viram dez mil, e novas pedras vão caindo, e novos círculos concêntricos vão brotando.
 
Se tudo der certo.




(Emílio Moura)


O “Epigrama para Emílio Moura” é um poeminha crepuscular, mais um entre vários deste livro de estréia, naquele clima de tristeza precoce que era tão tipico do jovem Drummond,
 
Tristeza de ver a tarde cair
como cai uma folha.
(No Brasil não há outono
mas as folhas caem.)
 
Há dois efeitos bem visíveis nesta primeira estrofe. O jogo de palavras com a expressão “cair” (a tarde cai, a folha cai); e o abrasileiramento das idéias, um dos pilares do Modernismo. “No Brasil não há outono” é uma idéia curiosa para um mineiro, porque no Sudeste as estações do ano não chegam a ser tão visivelmente demarcadas como na Europa, mas pelo menos são registradas pela imprensa, pela população.
 
No Nordeste, não. Até os vinte anos mais ou menos, eu só reconhecia a existência do verão e do inverno. Sempre achei que “primavera” e “outono” eram fenômenos atmosféricos de outros países. Fenômenos como a aurora boreal e o simum, que entre nós tinham existência meramente literária.
 
Tristeza de comprar um beijo
como quem compra jornal.
Os que amam sem amor
não terão o reino dos céus.
 
Um conceito bem de época esse de comprar um beijo, expressão que já vi usada muitas vezes, em contos e romances de cem anos atrás, como eufemismo para o sexo pago, o sexo prostitucional. Seria essa a intenção de Drummond?  De qualquer modo, é a reiteração de outro lugar-comum modernista: a comparação entre a pureza dos sentimentos românticos de tempos atrás, e a sordidez do mundo moderno, que resolve todos os problemas puxando a carteira e perguntando quanto custa. (Essa comparação continua a ser feita em 2022, só que em outros termos.)
 
E o castigo para os que amam sem amor não é (como seria num romance realista, de um Aluísio de Azevedo, de um Nelson Rodrigues) a blenorragia ou um abalo nas finanças, mas uma punição católica. (E com Carlos Drummond cabe sempre – sempre – ficar matutando até que ponto quem está falando é a sua nostalgia de rapaz-católico ou a sua ironia modernista-agnóstica.)
 
Tristeza de guardar um segredo
que todos sabem
e não contar a ninguém
(que esta vida não presta).



A idéia do segredo íntimo que o poeta recolhe para dentro de si e não conta a ninguém é uma imagem recorrente na obra do poeta. E esse desabafo plebeu de que “a vida não presta” é um pensamento diante do qual os Simbolistas e os Parnasianos recuariam, horrorizados tanto pela vulgaridade da idéia quanto pelo plebeísmo da forma. Para eles, a poesia era para os temas nobres e as frases profundas. Dizer “a vida não presta” equivalia a cutucar o nariz ou cuspir no chão.
 
Esse plebeísmo proposital era uma das armas do Modernismo, arma que provocou enorme rejeição em alguns círculos (“uma poesia mal-educada, cheia de vulgaridades, onde já se viu?!”). Pouco importa que na vida real todos proferissem as mesmas grosserias; só era proibido dizê-las em verso, ou pelo menos nos versos que iam para os livros. Na mesa de bar, como hoje em dia, valia tudo. (O livro A Conquista, de Coelho Neto, retrata bem essa época do pré-modernismo.)
 
Drummond fez um uso consciente desse tom de voz desabusado e sem pompa, indo até o famoso verso (no mesmo livro): “Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só” (em “Explicação”).
 
Outro detalhe é a presença do que Drummond chamou um dia de “cantar de amigos”, os versos em homenagem (ou dedicados) a amigos do peito. Em Alguma Poesia há poemas dedicados a Abgar Renault, Manuel Bandeira, Wellington Brandão, Mário Casassanta, Ribeiro Couto, Gustavo Capanema, Afonso Arinos sobrinho, Cyro dos Anjos, Pedro Nava, Martins de Almeida.
 
O único cujo nome aparece no título do poema é Emílio Moura (1902-1971), um desses muitos amigos de juventude com quem Drummond compartilhou as primeiras criações poéticas, e cuja presença insistiu em registrar no primeiro livro publicado.
 
Aqui no saite poesia.net, uma pequena coletânea dos poemas desse amigo introspectivo da fase mineira de Drummond.
 
http://www.algumapoesia.com.br/poesia3/poesianet285.htm

 








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