segunda-feira, 30 de agosto de 2021

4739) As fake news do Castelo Alto (30.8.2021)

 

“Basta eu abrir um livro para me ver transportado para um mundo diferente”. Sim. Todo livro é um portal. Sempre que vejo as lombadas verticais numa estante, sinto aquela sensação do astronauta Bowman em 2001, uma Odisséia no Espaço. Após abandonar a nave-mãe, pilotando seu módulo, ele avista no vácuo o Monolito, e quando este se põe “de lado” percebe-se que sua parte mais estreita (sua “lombada”) é uma abertura, uma fresta vertical para outro universo.
 
Pegar um livro é teleportar-se? De certo modo, sim. Teleportar-se numa viagem puramente mental, em que o corpo fica aqui, guardando o lugar de volta, e a alma se projeta lá longe.
 
Um recurso que a literatura fantástica já usou de variadas maneiras. Basta lembrarmos Em Algum Lugar no Passado (“Somewhere in Time”, Jeannot Szwarc, 1980). Christopher Reeve precisa voltar ao ano de 1912 para encontrar uma mulher por cuja foto se apaixonou. Ele se cerca de mobília, roupas e objetos do passado e, envolto nessa “aura”, retorna mental e fisicamente para 1912.
 
Objetos característicos de uma época parecem ter um vínculo cósmico com ela. E um descuido faz com que o pobre rapaz, já em pleno namoro em 1912, pegue distraidamente numa moeda de 1980 que por acaso ficou em seu bolso... e a moeda o traz de volta ao presente, à vida real.
 
Em 1961 Philip K. Dick começou a escrever O Homem do Castelo Alto no meio da uma crise emocional muito forte. Os romances que mandava para as editoras estavam sendo devolvidos, e sua então-esposa Anne estava fazendo um bom dinheiro com artesanato de jóias. Dick aderiu a essa atividade, mas ela o fazia sentir-se, ainda mais, um escritor fracassado.



 No capítulo 5 de sua biografia de Dick (Divine Invasions, 1989) Lawrence Sutin conta esse período, em que o artesanato de jóias e a prática do I-Ching, dois elementos do cotidiano tenso e neurótico de Dick em 1961, convergiram para a criação de um romance.
 
Dick produziu um objeto de que se agradou muito, um pequeno triângulo de metal, que deu de presente a seu vizinho Jerry Kresy. Esse objeto foi parar no livro O Homem do Castelo Alto.  É com ele que o sr. Tagomi consegue se transportar para o mundo paralelo onde os japoneses foram bombardeados em Hiroshima e Nagasaki, e o Japão perdeu a guerra.
 
Dick postula, já que se trata de um romance fantástico, uma carga prodigiosa de “wu” em alguns desses objetos. E na série de TV The Man in the High Castle de Frank Spotnitz (Amazon Prime, 2015-2019) vemos os antiquários Robert Childan e Ed McCarthy vendendo uma peça falsa a um casal japonês chique. Eles temem ser desmascarados, mas a mulher, ao segurar o medalhão que teria pertencido a um índio norte-americano, afirma sentir uma poderosa emanação de “wu”, de emoção humana impregnada naquela peça. Ella está captando, na verdade, a carga emocional injetada ali por Frank Frink, o artista-artesão problemático que a criou.
 
Na biografia de PKD, Sutin afirma que o escritor colheu num livro sobre jardinagem os termos chineses “wu” (a sabedoria, o Tao) e “wabi”  (inteligência, habilidade técnica).
 
O Homem do Castelo Alto fala na contiguidade entre esses dois universos em que a II Guerra Mundial teve desfechos opostos. E no mundo onde a ação transcorre circula um livro subversivo, The Grasshopper Lies Heavy, escrito por um misterioso Hawthorne Abendsen com o auxílio do I-Ching.
 
É o mesmo sistema que Dick estava usando para escrever seu livro. Diz ele, citado por Sutin:
 
Na verdade eu tinha decidido parar de escrever, e estava ajudando minha mulher no seu artesanato em jóias. E não estava feliz. Ela deixava para mim toda a parte mais chata do trabalho, e eu resolvi fingir que estava escrevendo um livro. E dizia: “Olha aqui, eu estou escrevendo um livro muito importante”. E para tornar a encenação mais convincente, comecei de fato a datilografar. E não tinha anotações. Não tinha nada em mente, exceto que durante muitos anos pensei em escrever algo sobre a Alemanha e o Japão derrotando os EUA. E sem anotação alguma, eu simplesmente sentei e comecei a escrever, somente para me afastar do artesanato em jóias. E é por isso que as joias desempenham um papel tão importante no romance. Sem anotações, eu não tinha nenhuma idéia preconcebida sobre como desenvolver o enredo, e usei o I-Ching para ir contando a história. (trad. BT)
 
Frank Spotnitz, com a equipe que adaptou o livro de Dick, tomou uma decisão arriscada mas que surtiu um bom efeito. Na série, em vez de livro, The Grasshopper Lies Heavy é uma série de filmes contrabandeados do mundo paralelo, mostrando a realidade oposta, e Abendsen é o cara que em seu “castelo alto” (seu refúgio, furiosamente buscado por nazistas e japoneses) reúne esses filmes que provam a existência de uma realidade paralela.
 
Nosso conhecimento do planeta e da humanidade é quase todo mediado por imagens, sons e textos. Somente quando viajamos podemos ter certeza absoluta, física, da existência da cidade A ou do país B.  
 
Não foi o próprio P. K. Dick que, num gracejo famoso, colocou isto em dúvida? Dizia ele: “Talvez o Japão não exista, mas quando compramos uma passagem aérea para lá ‘eles’ se atarefam e em poucas horas montam um cenário com aeroporto, hotel, etc., para nos convencer de que foi no Japão que desembarcamos”.
 
Os filmes contrabandeados por Abendsen mostram àquelas pessoas a existência “impossível” de um mundo diferente do mundo delas. Elas se recusam a aceitar. Dizem que tudo aquilo é falsificação – e o próprio Abendsen, a certa altura, admite ter produzido algumas falsificações grosseiras (filmando manchetes de jornal com letras recortadas, etc.) para contestar a vitória do Eixo. “Mas de repente os filmes de verdade começaram a aparecer”, diz ele.
 
Numa inversão cruel, quando ele é preso pelos nazistas na temporada 3 começa a produzir novas falsificações – numa tentativa de tirar a credibilidade dos filmes já conhecidos clandestinamente.
 
Essa proliferação de documentários em 16mm de um mundo vizinho é um pouco como a invasão do nosso mundo pelo mundo fantasmagórico de Tlon, no conto de Borges (“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, 1940). Um processo que abala por dentro a nossa cofiança na existência de um mundo, uma confiança que é posta em xeque quando vemos provas visuais da existência de um mundo diferente.
 
Por que “provas”? Porque filmes desse tipo são as únicas provas que a maioria de nós tem da existência de grande parte do mundo. Há grupos de terraplanistas hoje em dia afirmando que a Austrália não existe, e que todas as “provas” de sua existência são uma complicada conspiração feita às pressas, como na “boutade” de P. K. Dick.
 
Além de ser uma boa história sobre realidades alternativas, a série expande um tema típico de Philip K. Dick: “o que é o real?”. Se nosso conhecimento da maior parte das coisas nos vem através de livros e filmes, como sabermos se eles dizem a verdade ou não? E acaba desaguando, depois de uma volta completo, na questão da materialidade. As pessoas constroem um portal para se transportarem fisicamente aos outros mundos, onde possam pegar, cheirar, ver, provar que aquilo também é real.
 
 





sexta-feira, 27 de agosto de 2021

4738) A arte de organizar o diálogo (27.8.2021)



O diálogo é uma segunda dimensão do texto narrativo, por assim dizer. O “texto” diz uma coisa. O “diálogo” acontece noutro plano de realidade. É como se a narração fosse a imagem que nossos olhos veem na tela do cinema; e o diálogo são as vozes que nossos ouvidos escutam vindo do alto-falante. São duas dimensões que correm paralelas, cada uma consciente da presença da outra.
 
Ao longo dos anos desenvolvemos algumas técnicas para organizar a narração e o diálogo. Nos livros muito antigos isso era tudo emendado. Inventamos o travessão, por exemplo, para separar o que o personagem diz e o que o autor narra ou comenta.
 
Um exemplo. Digamos que é o início de um conto.
 
Os dois rapazes vieram andando devagar pela calçada, olhando as fachadas das casas, os números pregados nos muros.
 
– Acho que é aquela ali, com a grade.
 
– Sim, estou lembrando, parece que é ela mesmo.
 
Aproximaram-se do portão de entrada, tocaram a campainha.
 
Ficou claro para o leitor que são dois rapazes, que um deles fez um comentário e o outro respondeu. Destes quatro parágrafos, o primeiro e o último são pura narração, o segundo e o terceiro são puro diálogo.
 
Prosseguindo:
 
Passaram-se alguns segundos e em seguida apareceu uma mulher idosa na varanda do primeiro andar.
 
–  Pois não.
 
– A gente está procurando o Prof. Horácio, ele está?
 
– Ele viajou.
 
– Sabe quando volta?
 
– Não sei, pode ser daqui uma semana, ou mais.
 
– A gente trouxe uma carta para entregar a ele, pode ser?...
 
– Um momento que eu vou descer.
 
Ficaram esperando na calçada e daí a pouco a porta da frente se abriu.
 
Não acho que alguém tenha a menor dificuldade para visualizar esta cena. São “dois rapazes” no primeiro trecho, e o autor deixa claro para o leitor que não é preciso saber quem são eles, por enquanto; nem sequer lhe deu nomes. As frases que trocam entre si poderiam ter sido ditas por A e B ou por B e A, tanto faz.
 
Quando sabemos que apareceu uma mulher na varanda, reconfiguramos a cena inteira. Os travessões que se seguem indicam a mudança de interlocutor, e se o autor tiver uma habilidadezinha não precisar ficar explicando quem disse o quê. Pela situação descrita, o leitor pode deduzir que o “pois não?” foi dito pela mulher, e as demais perguntas são dos rapazes, e as respostas são dela.
 
Prosseguindo:
 
A mulher saiu, ajeitando um casaquinho sobre os ombros, porque soprava um vento frio de outono, apesar do sol. Trazia nas mãos um pacote amarrado com barbante, e aproximou-se devagar do portão, olhando para um e para o outro, alternadamente.
 
– Vocês são do curso?...
 
Os dois se entreolharam. O de barba respondeu:
 
– Somos, sim, senhora.
 
– Já viemos aqui antes – disse o de boné. – Talvez a senhora não lembre da gente.
 
– Vem muita gente aqui. Eu só sei que ele deixou essa encomenda para o caso de virrem dois rapazes do curso buscar. São vocês?
 
– Sim, sim, somos nós mesmos.
 
Ela aproximou-se do portão, devagar.
 
Quando a situação é descrita com clareza, o diálogo pode vir “a seco”, sem explicações, sem indicações. Muitos escritores adquirem um cacoete de colocar pequenos apêndices nas falas dos personagens, mesmo quando não é necessário. Fica uma coisa mais ou menos assim:
 
Os dois rapazes vieram andando devagar pela calçada, olhando as fachadas das casas, os números pregados nos muros.
 
– Acho que é aquela ali, com a grade – disse um deles.
 
– Sim, estou lembrando, parece que é ela mesmo – respondeu o outro.
 
Aproximaram-se do portão de entrada, tocaram a campainha.
 
Eu acho desnecessário esse “disse um, respondeu o outro”, mas há pessoas que preferem sinalizar dessa maneira, reiterando uma informação. Para que o leitor se sinta mais seguro, e saiba que não está interpretando erradamente o que lê. Entendo isto, mas para ganhar tempo e fornecer mais informações por linha de texto, pode-se colocar já no início as pequenas informações que diferenciam os dois personagens. Ficaria assim:
 
Os dois rapazes vieram andando devagar pela calçada, olhando as fachadas das casas, os números pregados nos muros.
 
– Acho que é aquela ali, com a grade – disse o rapaz de barba.
 
– Sim, estou lembrando, parece que é ela mesmo – respondeu o que usava boné.
 
Aproximaram-se do portão de entrada, tocaram a campainha.
 
Neste caso, a presença dos “apêndices” do diálogo se justifica mais. Tem informação sendo dada.
 
Na sequência do diálogo, esta linha aqui é importante:
 
– Já viemos aqui antes – disse o de boné. – Talvez a senhora não lembre da gente.
 
Esta linha alterna diálogo, narração e novamente diálogo. Entre as duas falas do personagem, o autor botou essa pequena frase sinalizadora, só para deixar claro quem estava falando, porque achou necessário. Se não achasse, a linha poderia vir assim:
 
– Já viemos aqui antes. Talvez a senhora não lembre da gente.
 
Mas também poderia vir desse jeito, sem perder a informação:
 
– Já viemos aqui antes. Talvez a senhora não lembre da gente – disse o de boné.
 
Qual a maneira certa? Não existe. São opções que cada pessoa vai fazendo à medida que escreve, porque um redator prefere dar ênfase a uma coisa, e outra prefere dar a outra. A única coisa realmente necessária é uma sinalização gráfica que separe de maneira clara o que é fala do personagem e o que é narração do autor. Para isso, usamos os travessões.
 
Tudo são convenções literárias e editoriais que se fixam de maneiras diferentes. Brasil, EUA e França separam de maneiras muito diferentes esses pedaços do discurso literário. A editoração norte-americana, por exemplo, costuma indicar os diálogos através de aspas, e não de travessões:
 
Os dois rapazes vieram andando devagar pela calçada, olhando as fachadas das casas, os números pregados nos muros.
 
“Acho que é aquela ali, com a grade,” disse o rapaz de barba.
 
“Sim, estou lembrando, parece que é ela mesmo,” respondeu o que usava boné.
 
Aproximaram-se do portão de entrada, tocaram a campainha.
 
Alguns escritores “americanizados” exigem que seus livros sejam marcados assim, e geralmente a editora não põe obstáculos. Rubem Fonseca era um que dava preferência a esse estilo. Mais uma vez, insisto: esas sinalizações existem para guiar o leitor. Se o leitor perceber que tal coisa é narração e tal coisa é fala, o objetivo foi alcançado.
 
Isso se torna mais importante quando o autor resolve fazer uma alternância constante entre as duas coisas, numa mesma falação do personagem:
 
A mulher idosa parou do lado de dentro do portão gradeado, olhou para um deles, depois para o outro.
 
– Estou velha mas minha vista é muito boa, e minha memória também – anunciou, de cabeça erguida. – Mas vem muita gente, como já falei, e muitas vezes o professor mesmo abre a porta para eles. – Franziu a testa. – Como vou saber se vocês são mesmo do curso?
 
É uma maneira comum de tornar o diálogo mais movimentado. Fiz mais acima a comparação de que narração e diálogo funcionam como imagem e som. Neste útimo parágrafo, o autor faz uma alternância, mostrando o que a mulher diz, e de que jeito ela está dizendo.
 
Em todo caso, é preciso manter sempre a separação com travessões, do jeito que está aí em cima. Acho a maneira mais simples e mais clara de indicar o que é uma coisa e o que é outra. De vez em quando, em livros em inglês, em francês, em espanhol, vejo parágrafos de diálogo indicados assim:
 
– Como eu disse à senhora, a gente trouxe uma carta para o professor – disse o rapaz de boné. É a cópia de um texto que eu mostrei a ele por telefone, e ele me pediu que copiasse.
 
Tem editoração de livros que faz assim: bota o primeiro travessão, para indicar que é diálogo, e no resto do parágrafo seja o que Deus quiser. A gente é que tem de interpretar se o que lê é fala ou descrição.
 
Repito: não existe uma regra universal para isso. Cada país faz de um jeito, e até cada editora faz pequenas mudanças de acordo com seu juízo e sua conveniência. Até mesmo certos autores, como o exemplo de Rubem Fonseca. 
 
E outra coisa: nem de longe estou tocando na questão do romance experimentalista, vanguardista, fora-de-esquadro, cuja natureza inclui a subversão dessas pequenas normas.
 
Na literatura brasileira de hoje, essa “dicção visual” de muitos autores experimentais se disseminou largamente. Houve uma espécie de “liberou geral”. Cada pessoa pontua do jeito que quer, mistura narração com diálogo na mesma frase, troca de interlocutor sem avisar, mostra frases e não deixa claro se o personagem pensou aquilo ou se disse em voz alta.
 
Isso vale? Por mim, vale tudo. É até bom porque exige mais da atenção do leitor. Cada novo parágrafo é um teste pra ver se ele está acordado mesmo, ou se está lendo “no piloto automático”.
 
Se vale tudo, então ao meu ver continua valendo o que valia antes, a maneira convencional, cômoda, quase consensual, de pontuar e dividir graficamente o texto.
 
Os exemplos inventados que coloquei aí acima não são sequer exemplos oficiais de editoração de texto, ofício do qual entendo pouco. São feitos do ponto de vista do autor, de quem escreve, para que o texto dele tenha mais clareza. E dê menos trabalho a quem vai, de fato, preparar o texto para publicação.
 
 
 
 
 






terça-feira, 24 de agosto de 2021

4737) Jorge Luís Borges, 122 anos (24.8.2021)




Neste 24 de agosto, o escritor argentino estaria completando 122 anos. Em datas assim eu de vez em quando faço um ping-pong de textos do autor, usando suas obras mais conhecidas. Desta vez, resolvi usar apenas citações de um dos seus livros da velhice, O Livro de Areia (1975), que inclui “Utopia de um Homem que está Cansado”, concorrente ao Prêmio Nebula de Ficção Científica, naquele ano. Cito da tradução de Lígia Morrone Averbuck.



“O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última. Não sei por que estão numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita admitem qualquer número.
Depois, como se pensasse em voz alta:
– Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto do tempo.”
(“O Livro de Areia”)


“Em meu curioso ontem – respondi – prevalecia a superstição de que entre cada tarde e cada manhã ocorrem fatos que é uma vergonha ignorar. O planeta estava povoado de espectros coletivos, o Canadá, o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado Comum.”
(“Utopia de um Homem que está Cansado”)


 
“Para ver uma coisa é preciso compreendê-la. A poltrona pressupõe o corpo humano, suas articulações e partes; as tesouras, o ato de cortar. Que dizer de uma lâmpada ou de um veículo? O selvagem não pode perceber a bíblia do missionário; o passageiro do navio não vê o mesmo cordame que os homens de bordo. Se víssemos realmente o universo, talvez o entendêssemos”.
(“There Are More Things”)


“Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu uma bebida e ela recusou.
– Sou feminista – disse. – Não quero arremedar os homens. Desagradam-me seu tabaco e seu álcool.
A frase queria ser engenhosa e adivinhei que não era a primeira vez que a pronunciava. Soube depois que a frase não era característica sua, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.”
(“Ulrica”)


“Salvo nas severas páginas da história, os fatos memoráveis prescindem de palavras memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os soldados que estão por entrar na batalha falam do barro e do sargento.”
(“O Outro”)


“Nos anos de minha juventude – disse o Rei – naveguei em direção ao ocaso. Em uma ilha, vi lebréus de prata que davam morte a javalis de ouro. Em outra, alimentamo-nos com a fragrância de maçãs mágicas. Em outra, vi muralhas de fogo. Na mais distante de todas, um rio abobadado e pendente sulcava o céu e por suas águas iam peixes e barcos.”
(“O Espelho e a Máscara”)

 
“ – E a grande aventura de meu tempo, as viagens espaciais? – disse eu.
– Já faz séculos que renunciamos a essas translações, que foram certamente admiráveis. Nunca pudemos nos evadir de um aqui e um agora.
Com um sorriso acrescentou:
– Além disso, toda viagem é espacial. Ir de um planeta a outro é como ir à granja em frente. Quando o senhor entrou neste quarto, estava realizando uma viagem espacial.
– Assim é – repliquei. – Também se falava de substâncias químicas e de animais zoológicos.”
(“Utopia de um Homem que está Cansado”)


 “Não há um só lugarejo na província que não seja idêntico aos outros, até no acreditar-se diferente. As mesmas ruelas de terra batida, os mesmos becos, as mesmas casas baixas, como para que um homem a cavalo ganhe mais importância.”
(“A Noite das Dádivas”)


“Estava ébrio de vitória. Inundaram-nos sua firmeza e sua fé. Ninguém nem por um segundo pensou que estivesse louco.”
(“O Congresso”)
 


“Sobreveio depois um longo silêncio.
– Que te deu a primeira mulher que tiveste? – perguntou-me.
– Tudo – respondi.
– A mim também a vida me deu tudo. A todos a vida dá tudo, mas a maioria o ignora. Minha voz está cansada e meus dedos débeis, mas escuta.
Disse a palavra Undr, que quer dizer maravilha.”
(“Undr”)
 





sábado, 21 de agosto de 2021

4736) O Homem que parou o Tempo (21.8.2021)




A imagem mais recorrente e mais expressiva (“a imagem icônica”, como se diz hoje em dia) do filme brasileiro O Homem que Parou o Tempo (2018) de Hilnando SM (no "Prime Vídeo") é o plano vertical das pernas do protagonista, os pés descalços afundados na areia, sendo envolvidos pelas espumas das ondas do mar, em suas idas e vindas, num movimento de invasão e avanço, e depois de recuo e sucção. Ele está imóvel, enquanto o mar (o tempo) avança e recua.
 
João (Gabriel Pardal) é um rapaz que programa códigos de computador (“a pior profissão de todas”) mas nas horas vagas parece estar desenvolvendo uma teoria própria sobre como imobilizar o tempo e concentrar toda sua energia e consciência no momento presente. Mora num conjugado minúsculo, e sua parede é coberta de páginas coladas com diagramas, fórmulas, gráficos, a parafernália habitual no cinema para sugerir uma atividade científica incessante.
 
Tem dois ou três amigos que insistem em trazê-lo para uma vida normal (festinhas, etc.). Compra maconha a um deles. Uma noite, indo a uma festinha, conhece na portaria do prédio uma garota, anda com ela pela praia – é nesses poucos minutos que o filme ganha uma certa vida, porque a atitude simpática e não-julgadora da garota o solta um pouco; mas tudo fica por aí.
 
O problema do filme é o de muitos outros: mostrar a crise de um indivíduo que tentou abarcar mentalmente um problema amplo demais, complexo demais. Não temos como saber se ele de fato equacionou o problema, se está mesmo a ponto de resolvê-lo. Não sabemos nem se o problema existe, ou se ele é apenas mais um maluco capaz de rabiscar equações.
 
O personagem e o filme estancam no meio do caminho. Nenhum dos dois consegue dizer o que está pensando, apesar de ambos despertarem a nossa simpatia e a nossa curiosidade.


É um pouco o que ocorre com The Sound of Silence (2019) de Michael Tyburski. Peter Lucian é um “afinador de casas”, um sujeito com ouvido absoluto cuja profissão consiste em examinar as casas das pessoas e eliminar os ruídos dissonantes ou conflitantes que prejudicam os moradores sem que estes percebam. Uma espécie de feng shui sonoro.
 
Interpretado por Peter Sasgaard, é um personagem mais maduro, mais circunspecto, e que transmite mais a idéia de um cientista incompreendido, um gênio capaz de perceber o que nós não entendemos. Mesmo assim, sua vida é uma sucessão de mal-entendidos, de pequenos fracassos profissionais. Todo mundo o acha fascinante. Todo mundo o acha esquisito. Todo mundo acha que ele está ficando doido.
 
O filme de Tyburski se torna mais bem realizado do que o de Hilnando SM por ser visivelmente uma produção mais profissional, mas principalmente porque consegue nos fazer penetrar pelo menos um pouco no mundo mental do protagonista. Peter Lucian explica a vários clientes e amigos sua teoria, dá pistas concretas sobre o que faz, vemos como ele atua, percorrendo os apartamentos com fones, diapasões, sei lá o que mais.
 
O delírio dele tem uma silhueta que nos é visível, tem um foco. Ficamos com uma noção do que está em jogo ali. E a trilha sonora consegue criar um clima cheio de efeitos e de harmônicos sutis, dando por vezes a impressão de que conseguimos ouvir o que aquele maluco alega estar ouvindo.
 
O João de O Homem que Parou o Tempo verbaliza aqui e ali suas intuições, mas elas não nos avançam grande coisa. “A gente fica com pressa e ansioso para chegar num lugar, aí acaba que a gente não vive o momento que está vivendo. (...) A gente fica muito preocupado em chegar ao nosso destino, e aí deixa de curtir este momento presente. Aqui, agora. O caminho.”
 
Quando ele some, no fim do filme, alguém entra no apartamento e vê o último bilhete que ele pregou na parede: “Deixar de existir agora para estar presente sempre”. Há um descompasso, uma distância, entre a atividade supostamente científica de João e a verbalização que ele faz para os outros, mesmo admitindo que ele tenta simplificar ao máximo o que pensa, porque sabe que seus amigos são leigos.
 
Não parece um jovem cientista equacionando o problema do fluxo do Tempo, um dos problemas mais fascinantes que existem. Parece um rapaz se queixando de que ele e a vida estão em descompasso.
 
Um problema semelhante, com uma solução completamente diversa destes dois filmes, foi encarado por Darren Aronofsky em seu filme de estréia Pi (1998). Max é um jovem matemático cuja obsessão é encontrar os padrões matemáticos que servem de base à realidade material. (Ou coisa parecida.)


Suas pesquisas o levam a entrar em contato com dois grupos muito diferentes. Um deles tenta fazer previsões matemáticas da flutuações da Bolsa de Wall Street. O outro tenta encontrar mensagens cabalísticas cifradas no texto da Torá.
 
O filme de Aronofsky é uma espécie de ficção científica que eu chamo de Ciência Gótica, pois de Ciência (no caso, a linguagem matemática, que não é propriamente uma ciência, mas um instrumento científico) tem apenas a fachada. O que ocorre por trás não é mais científico do que o que ocorre em Frankenstein ou em The Time Machine ou em Neuromancer.
 
O que distingue oi filme de Aronofsky dos outros dois é a quantidade de elementos dramáticos que ele consegue extrair dessa mania de Max pela Teoria dos Números e seus desdobramentos. De uma matéria tão árida ele extrai dois bons ganchos para ação dramática: investimentos na Bolsa, decifração cabalística das escrituras sagradas. Muito mais do que Tyburski consegue extrair de sua “pesquisa sonora” e do que Hilnando extrai de sua “pesquisa temporal”.
 
A ficção científica é muitas vezes acusada de ser difícil, de ser acessível apenas a quem tem profundo conhecimento da ciência. É uma crítica despropositada. A FC usa sistematicamente, há cerca de um século e meio, a Arte do Mumbo-Jumbo, como dizem os norte-americanos. A arte de produzir uma série de argumentos aparentemente profundos, mas coerentes, e expostos com inteligência.
 
Quando em 1895 H. G. Wells popularizou o conceito de que o Tempo seria uma “quarta dimensão”, isso lhe bastou para dar ao seu herói uma espécie de “automóvel temporal” e fazê-lo viajar pelo futuro. E não apenas viajar por ele, mas meter-se em aventuras, perigos, descobertas. A Máquina do Tempo não teria popularizado seus conceitos se o livro inteiro se resumisse a um grupo de cientistas discutindo diante da lareira.
 
O mumbo-jumbo científico, o arrazoado explicando o fluxo do tempo, a influência subliminar dos sons ou os padrões matemáticos da matéria pode muito bem ser explicado, até numa linguagem mais complexa, se isso acontecer no meio de uma história humana, movimentada, imprevisível, que desperte nossa atenção e nos envolva no destino de seus personagens. Foi essa a descoberta original da FC, com Julio Verne, Wells e todos os demais.
 
E para os que desdenham a história de aventuras, basta às vezes um mistério de peso e uma imagem marcante. Kenoma (1998) de Eliana Caffé, nos mostra um cientista-louco sertanejo, um gênio selvagem que construiu num sertão remoto uma máquina do Moto Perpétuo que se parece a uma enorme roda-gigante artesanal, feita de metal e madeira.


Ele não compartilha suas fórmulas. Os roteiristas do filme (E. Caffé e Luís Alberto de Abreu) não precisaram inventar o Moto Perpétuo. Bastou-lhes conceber a situação básica, produzir um objeto visualmente impactante (direção de arte de Clóvis Bueno) e contar com o “fulgor satânico” do ator José Dumont.
 
Tanto na fantasia quanto na ficção científica, as explicações são necessárias, tanto sobre a origem dos dragões quanto sobre a natureza do ciberespaço. Mas o leitor (= o espectador) precisa delas apenas para se situar: ele vai ao livro e ao filme em busca do conflito humano. Se o conflito for empolgante e conseguir arrebatá-lo, ele consegue até mesmo digerir as racionalizações mais profundas de um Arthur C. Clarke ou de um Stanislaw Lem.
 


 




quarta-feira, 18 de agosto de 2021

4735) Primeiras Estórias: "Sequência" (18.8.2021)



Na obra de Guimarães Rosa os animais aparecem de maneira curiosa.
 
Existem fabuladores contemporâneos que não se pejam de fazer um bicho falar, mesmo numa estória que transcorre nos dias de hoje, povoados por automóveis e televisores. 

Existem outros onde os animais aparecem como representações arquetípicas do inconsciente pessoal ou coletivo, e cada entrada deles na estória parece acompanhada por uma orquestra – inaudível; afinal, estamos em um livro.
 
Nos livros de Rosa muitas vezes alguma coisa acontece em torno de animais que parecem estar vivendo num mundo só deles, onde eles sabem coisas, se relacionam de maneira complexa com coisas que só a eles dizem respeito, e conseguem fazer isso apesar de estarem misturados a um mundo confuso de seres humanos dos quais não conseguem se livrar.
 
Talvez o melhor exemplo disso seja o “burrinho pedrês” do conto que abre Sagarana (1946). Nessa noveleta contam-se mil estórias humanas (os vaqueiros contam uns para os outros), mas a verdadeira estória que está sendo contada é a do burrinho que, dentro de suas limitaçõezinhas, ajuda a levar a boiada. Ele vai, ele volta, e ainda escapa com vida de uma enchente. E no fim a gente descobre que era a estória dele, que estava sendo contada: os vaqueiros são mera figuração de luxo.

(ilustração de Poty para "O burrinho pedrês")


Não vou nem falar na “Conversa de Bois”, no mesmo livro, onde temos acesso até a um diálogo telepático, mediúnico, entre os bois-de-carro que estão trasladando um defunto rumo a seu ponto final.
 
O que quero mesmo usar para comparação é “A estória de Lélio e Lina” (em Corpo de Baile, 1956), onde um vaqueiro larga um emprego, sai sem rumo, encontra no caminho um cachorro perdido e começa a segui-lo. Tal como Augusto Matraga, viajando igualmente sem rumo, seguiu o voo das maritacas, e acabou encontrando lá na ponta do trajeto a sua hora, a sua vez, e o facão de Joãozinho Bem-Bem.
 
O vaqueiro Lélio é levado pelo cachorro para aquela fazenda, à qual o cachorro pertencia. E a dona do cachorro é Dona Rosalina, uma senhora idosa e bonita, acolhedora e amiga, a quem Lélio acaba se apegando mais do que às moças de sua idade; e o resto está na estória.
 
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2019/02/4438-estoria-de-lelio-e-lina-2622019.html
 
Assim começa “Sequência”:
 
Na estrada das Tabocas, uma vaca viajava.
 
Vacas não viajam, não é mesmo? Viajar é um verbo humano. Pressupõe intenção, planejamento, destinação, chegada.
 
A vaca é “uma rês fujã”, que fazia parte de uma boiada oriunda “do Pãodolhão”. Rebelde, ela se desgarra da boiada e começa a refazer o trabalhoso trajeto de volta, em busca do seu lugar de origem. Dada a noticia de que a vaca fugiu, Seu Rigério, o destinatário da boiada, fica meio enfarruscado, o que faz um dos seus filhos, “o rapaz”, não nomeado, montar no cavalo e partir em busca da desgarrada.
 
E o conto é isso, a vaca voltando, esquipando de campos afora, atravessando rios, acompanhando cercas até descobrir uma brecha, mas seguindo o GPS milenar dos bichos, “fronteando o nascente” enquanto o rapaz a busca “indo de oeste para leste”. Nestas indicações, aliás, veja-se a adequação da terminologia ao personagem. Porque uma vaca não está indo do oeste para o leste, mesmo que siga nessa direção; ela se guia pelo sol que vê ou pelo que lembra.
 
E este continho inteiro é a descrição dos variados ambientes por onde passa a vaca fugindo a trote lento e o rapaz teimoso que a persegue “à espora leve”, sem perder de pista.
 
O conto se deslinda nos últimos parágrafos, quando a vaca por fim irrompe na fazenda do seu dono anterior, o Major Quitério, do Pãodolhão, seguida já de perto pelo rapaz.
 
Tanto ele era o bem-chegado!
A uma rede de pessoas. As quatro moças da casa. A uma delas, a segunda. Era alta, alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a ela diria: “É sua”. Suas duas almas se transformavam? E tudo à sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se.
E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus passos.
 
Ou seja: toda essa fuga da vaca teve como consequência (teria tido como intenção?!) arrastar o rapaz até a outra fazenda, onde ele conhece a moça, apaixonam-se e casam.
 
Tal como o cachorrinho conduziu Lélio até a fazenda onde morava Lina, o que resultou noutro tipo de desfecho.
 
No meio disso tudo, os analisadores de detalhe não deixarão de perceber pistas de que para Guimarães Rosa seguir um animal é seguir o inconsciente humano. Não porque o inconsciente seja superior ao consciente, mas porque é sua metade. Vamos reconhecer que o inconsciente também se emociona e se confunde, a intuição muitas vezes nos faz dar com os burros nágua, o instinto de vez em quando nos faz cometer ruindades. O mesmo vale para a consciência, a racionalidade, o raciocínio.
 
O recado que essas estórias nos dão não é a mensagem simplória de: “Siga o inconsciente, ele é mais sábio do que sua mente raciocinadora”, é algo simples como: “Alterne seu raciocínio e sua intuição do mesmo jeito como alterna sua perna direita e sua perna esquerda, ao caminhar.” E pronto!
 
Seguindo a vaca, o rapaz cumpre um percurso simbólico que não deixa de ter um clima de cerimônia de iniciação, como quando ele se descalça e atravessa um rio, “liso e brilhante, de movimentos invisíveis”.
 
Passo extremo! Pegou a descalçar as botas. E entrou – de peito feito. Àquelas quilas águas trans – às braças. Era um rio e seu além. Estava, já, do outro lado.
 
O rio aparece de variadas formas na obra de Guimarães Rosa, mas muitas vezes como uma fronteira, um limite, um portal que dá acesso a outro mundo. E nesse trecho vê-se também o gosto lúdico do autor, brincando com as palavras – partindo e invertendo a palavra “tranquilas”, talvez para sugerir os movimentos alternados de idas e vindas dos braços de quem nada.
 
No encerramento do conto, ele pisca o olho para a tradição oral, referindo-se à “vaca-vitória”. Minha mãe e minha tia contavam estórias à gente, na infância, e terminavam às vezes dizendo: “Era uma vez uma vaca Vitória, soltou um peido e acabou-se a estória”. E a gente ia dormir com uma gargalhada sumindo no ar.
 

(Guimarães Rosa com seus pais, D. Chiquinha e Seu Florduardo)
 
 
 
 
 
 








domingo, 15 de agosto de 2021

4734) Erros criativos (15.8.2021)



(provas corrigidas de Un Coup de Dés")

Gosto de colecionar erros criativos, que podem ser de diversos tipos. Um dos mais frequentes é quando uma pessoa tenta fazer ou dizer algo, e por uma razão qualquer acaba fazendo ou dizendo algo diferente do que pretendia – e o resultado traz uma informação nova, um detalhe curioso que em circunstâncias normais talvez não ocorresse a ninguém.
 
Não é simplesmente o erro onde a gente manga do erro. É o erro que às vezes até parece intencional, porque o resultado poderia até ser justificado, mesmo que com um raciocínio um pouco tortuoso.

 
Meu amigo Mario Bag, ilustre ilustrador da minha obra literária, postou no Facebook tempos atrás:
 
Gastaram tanto tempo discutindo se o certo era dizer que alguém entrega algo "a domicílio" ou "em domicílio" que, talvez por causa do uso contínuo de "Home-Office" durante a pandemia, surgiu uma outra expressão (que já escutei de duas pessoas consideradas "do povo"): "ENTREGA A HOME-CÍLIO".
 
É um erro? É, se considerarmos que a pessoa entendeu mal algo que escutou e não reproduziu corretamente o que tinha escutado, como talvez fosse sua intenção. Mas o ruído que ela introduziu no termo, tentando fazer sentido dele, mostra que houve um entendimento do conteúdo.
 
Ou seja: a mensagem foi distorcida, mas a intenção significativa (indicar que se tratava de “algo relativo à residência de alguém”), se manteve, mesmo que por um caminho tortuoso.
 
São palavras distintas, porque em inglês “home” vem do proto-germânico “haimaz” (=lar), enquanto que em português “domicílio” vem do latim “domus” (=casa). A semelhança sonora, porém, resolveu poeticamente a parada.
 
O mais comum, no entanto, é que por ocasião de um erro de leitura ou de escutação o sentido vá pro espaço.
 
Li num artigo: “Fulano de Tal construiu canários para peças teatrais, óperas e desfiles de modas”. Na verdade trata-se de “cenários”. O que não me impediu de por uns cinco ou dez segundos erguer os olhos para a parede e visualizar um profissional num ateliê, parecido com um antiquário ou uma loja de taxidermia, rodeado por gaiolas de variados tamanhos exibindo canários artesanais em variadas cores, e posturas imóveis.
 
A literatura está cheia de exemplos de mensagens enriquecidas por ruídos telefônicos. Já mencionei, nesta série (consultem no blog a tag “Erros Criativos”) o caso do livro Naked Lust (“Luxúria Nua”), de William Burroughs. O título foi comunicado aos editores por telefonema internacional.  Por isto mesmo acabou virando oficialmente Naked Lunch  (“Almoço Nu”), e o resto é História.
 
Algo semelhante aconteceu com Gene Wolfe, o grande autor da série de FC “The Book of the New Sun”. O último romance da série intitula-se A Cidadela do Autarca (“The Citadel of the Autarch”). Ora, autarca é uma palavra rara mesmo em português, domínio em que talvez sejamos mais afeitos a elementos gregos do que o pessoal dos EUA. “Autarca” significa “soberano absoluto”.
 
Em 1981, por telefone, Wolfe informou o título da obra-em-progresso a Charles N. Brown, o saudoso editor da revista Locus. Brown não entendeu direito o que tinha ouvido e anunciou, no número seguinte da revista, que Gene Wolfe estava prestes a lançar o romance The Castle of the Otter (“O Castelo da Lontra”).
 
O que fez Wolfe? Correu às redes sociais, que nem existiam ainda, para clamar-se prejudicado? De jeito nenhum. Ele simplesmente declarou que “O Castelo da Lontra” era um nome excelente –  e publicou um ano depois um livro com esse título, reunindo material relativo à pesquisa e criação de sua série, dedicado a Brown e à equipe da Locus.

 
(Na revista do mês seguinte, Charles N. Brown pediu desculpas pelo erro e disse que o livro se intitulava na verdade “The Castle of the Autarch”. Wolfe comentou: “Ainda não chegou lá, mas está esquentando.”) 


("Oblique Strategies")
 
O compositor Brian Eno e seu parceiro Peter Schmidt inventaram um “baralho de conselhos” intitulado “Estratégias Oblíquas” (Oblique Strategies). São cerca de cem cartas, cada uma com uma frase impressa, que eles costumavam tirar ao acaso, quando estavam encrencados num problema criativo qualquer.
 
Uma dessas cartas dizia algo como: “Transforme o Acaso num aliado.” Ou seja: quando num trabalho criativo surge uma interferência não-prevista, mas o resultado é interessante, que motivo temos para eliminar esse “ruído”? Apenas o fato de que “não estava no roteiro”? Dane-se o roteiro. O roteiro é um ponto de partida para alguém começar a criar, não é uma descrição prévia de como deve ser a obra no final da criação.
 
Na série de TV “Twin Peaks”, de David Lynch, um dos principais personagens é o “espírito maligno” chamado de Killer Bob. É uma espécie de fantasma que persegue as pessoas e impele os homens ao estupro e ao assassinato. Como surgiu o personagem?  Durante uma gravação, o reflexo de um dos assistentes, um cara feioso, agachado numa posição que parecia ameaçadora, foi captado pela câmera. Em vez de cortar a imagem e filmar de novo, David Lynch a manteve, e criou o personagem, usando o assistente (Frank Silva) como ator pelo restante da série.
 
Era uma cena comum, com a personagem Laura Palmer sozinha em seu quarto. Ao ver pela primeira vez a imagem captada pela câmera, Lynch assustou-se ao perceber, por um ou dois segundos, a imagem daquele sujeito num quarto que se supõe quase deserto. Era como um fantasma obsessor. E ele entendeu de imediato que se mantivesse a imagem no filme o susto do público seria equivalente ao dele. Surgiu assim o Killer Bob.

 
(Killer Bob)
 
Reza a lenda que uma boa parte do críptico Finnegans Wake (1939) de James Joyce foi ditado pelo autor, acamado, a Samuel Beckett, que durante um bom tempo trabalhou como seu secretário. Durante uma dessas sessões, Joyce estava ditando o texto quando alguém bateu à porta e ele respondeu: “Pode entrar!”. 

Beckett, obedientemente, colocou o “Pode entrar!” no texto do livro. Joyce, ao que consta, se divertiu com o incidente, e o “erro” está lá até hoje.
 
 
 
 







quinta-feira, 12 de agosto de 2021

4733) Tarcísio Meira x Paulo José (12.8.2021)



O cinema brasileiro perdeu de ontem para hoje dois arquétipos masculinos que ajudaram a dar-lhe forma. Não me refiro ao teatro porque nunca vi nenhum dos dois no palco, e não me refiro à televisão por considerá-la (de forma injusta, certamente) um mero arremedo do cinema.
 
Paulo José pertence longamente à minha memória de espectador, e lamento não poder dizer o mesmo de Tarcísio Meira, para o qual (também de forma injusta) sempre torci o nariz. Paulo foi para mim um grande ator, e mais do que isso: me dava a impressão de ser um cara real, um cara com quem você podia sentar numa mesa, ficar olhando o mar, tomando um chope e jogando conversa fora durante uma tarde inteira.
 
Tarcísio era essa coisa terrível, um galã, e em vista disso nunca me passava a sensação de que pudesse haver um cara de verdade dentro dele, como de um boneco de Olinda.
 
Para ser justo com o Tarcísio hoje falecido, registro que ele próprio afirmou, em entrevistas, que não aguentava mais ser um galã, que isso o incomodava. Acredito piamente. Nas raras vezes em que o vi ao natural, num talk-show ou numa entrevista jornalística, tive vislumbres do cara boa-praça que ele provavelmente foi.
 
Mas o galã o engolia, como já engoliu outros tão bons quanto ele. E como a “estrela” já engoliu tantas mulheres que queriam ser atrizes e até poderiam sê-lo, se o star-system tivesse deixado.
 
O que é um galã? É um boneco, um truçulho de papel machê com três metros de altura e sorriso congelado na carantonha de traços impecáveis, uma promessa de masculinidade indestrutível que nunca precisa ser realizada. As mulheres que sonham com ele não querem homens problemáticos, querem promessas tranquilizadoras.
 
Triste do galã, esse espantalho devorado por mil platéias de lâmias inocentes.
 
Tarcísio, coitado, foi obrigado pelo contracheque a carregar essa tralha nas costas a vida inteira, submetendo-se até a coisas constrangedoras como afirmar em plena tela que o Brasil iria morrer se não ficasse independente: deu nisto aqui.
 
As mulheres se apaixonavam por ele como quem se inscreve previamente num serviço de voluntariado qualquer. Poderia ter sido um ator muito melhor, e talvez até tenha sido, à revelia da minha indiferença. Em minha defesa, invoco aquele sorriso odontológico com que ele brindava as companheiras de close e de beijo técnico.
 
Só o enxerguei de verdade quando ele fez o Grande Sertão: Veredas  (1985) de Walter Avancini.
 
Torci o nariz mais uma vez ao ouvir falar que ele estava escalado para fazer o vilão Hermógenes. Quando o vi, a tela ficou do tamanho de uma tela de cinema. O seu Hermógenes fazia o chão ceder. Foi a coisa bronca. A parte com o cramulhão. Aquele ronco de caverna brotando dos gorgomilos, pulsando uma macheza raiada de maldade. Fez as mulheres fugirem, e nessa hora foi ator até a meia-lua da unha.
 
Fiz as pazes com ele, por fim, e debitei o resto na conta impagável do Mercado. E depois pude reencontrar um pouco desse seu lado verdadeiro, barbazul, soturno, no fidalgo sombrio que ele veio a encarnar em A Muralha (2000) de Maria Adelaide Amaral. Parece até que lhe fez bem a obrigação frívola de ser bonito e ter sorriso colgate nas novelas. Ele acumulava as pressões ctônicas que todo ator de verdade contém. Os carrêgos do mal-ser. E quando alguém lhe jogava em cima capote, chapelão e a memória genética de seus avatares escravizadores, ele fazia brotar dali o petróleo cru que já incendiou tantas feiticeiras, fazendo-nos lembrar de quem viemos.
 
Paulo José, coitado, surgiu no mundo como o contrário disso. Era o cara boa pinta de Ipanema, camisa banlon, sandália japonesa, rapaz de apartamento, carro esporte, calçadão ensolarado. Em Todas as Mulheres do Mundo foi o alter-ego de tudo que sonhávamos ser, alegre, despreocupado, fofoqueiro, conquistador desajeitado e irresistível.
 
Nem boto Leila Diniz na negociação, porque seria covardia, mas o cordão-encarnado de beldades que ele ia traçando nos reconciliou com nossa própria masculinidade adolescente e tateante, com mais jeito para a comédia zona-sul do que para a tragédia shakespeariana.
 
“Paulo” era alegre, mentiroso, contraditório, ora galinha, ora Romeu, tinha lá seus momentos poéticos, mas para nós, em quem a masculinidade se agigantava rodeada de tabus e deveres e terrores, parecia cochichar: “relaxa, trepar com uma garota também pode ser uma coisa divertida”.
 
Foi portanto com um terreno já aplainado que ele em seguida revelou seu lado sombrio; que nos acomodou à sombra de suas próprias angústias, em O Padre e a Moça. Todos nós, celibatários involuntários, entendíamos pra valer as angústias de um celibatário compulsório. Todos nós sabíamos o que era fantasiar em vão com Helena Ignez.
 
Paulo José foi se ampliando e se enriquecendo como ator, aos nossos olhos, e no Macunaíma era possível perceber, por dentro do personagem indigeníssimo e paulistíssimo, uma carioquice que não pareceu deslocada, porque o mito macunaímico nunca pretendeu ser municipal. E mais tarde, na alegoria da masculinidade frágil que foi O Homem Nu, ele conseguia passar para o público não apenas o aperreio sem limites de quem se sente perseguido por uma cidade inteira, mas também a malandragem de quem o tempo todo está pensando “quando eu contar essa, a turma não vai acreditar...”.
 
Esse rapaz atrapalhado mas leve foi uma herança que ele deixou para toda uma geração de rapazes que eram atrapalhados mas pesadíssimos, traziam às costas o peso da responsabilidade patriarcal, depois o peso da angústia existencial, depois o peso da revolução social, depois o peso do desempenho sexual... Com tantos bonecos de papel machê para carregar, era bem vindo o exemplo de um meio-malandro que nos tocava com o cotovelo, largava os bonecos todos e saía correndo. Mesmo nu e perseguido pela polícia.
 
Vi Paulo José em pessoa apenas duas vezes, em tantos anos de Rio. Uma vez, num lançamento de livro, ele subiu no palco e tocou algumas cançonetas num teclado, explicou que era um dos exercícios que fazia para combater o Mal de Parkinson, e que com isso estava virando pianista.
 
A vez seguinte foi numa festa, na casa de amigos, eu já estava na sala, de long-neck em punho, numa roda de papo, quando alguém apontou lá longe e disse: “Você viu quem está ali? Paulo José.” Ele estava num sofá, rodeado de amigos, numa conversa tranquila. Criei coragem, fui até lá, falei que era fã dele, trocamos algumas frases cordiais; ele apertou minha mão e sorriu como se me reconhecesse depois de tantos anos.