sexta-feira, 27 de agosto de 2021

4738) A arte de organizar o diálogo (27.8.2021)



O diálogo é uma segunda dimensão do texto narrativo, por assim dizer. O “texto” diz uma coisa. O “diálogo” acontece noutro plano de realidade. É como se a narração fosse a imagem que nossos olhos veem na tela do cinema; e o diálogo são as vozes que nossos ouvidos escutam vindo do alto-falante. São duas dimensões que correm paralelas, cada uma consciente da presença da outra.
 
Ao longo dos anos desenvolvemos algumas técnicas para organizar a narração e o diálogo. Nos livros muito antigos isso era tudo emendado. Inventamos o travessão, por exemplo, para separar o que o personagem diz e o que o autor narra ou comenta.
 
Um exemplo. Digamos que é o início de um conto.
 
Os dois rapazes vieram andando devagar pela calçada, olhando as fachadas das casas, os números pregados nos muros.
 
– Acho que é aquela ali, com a grade.
 
– Sim, estou lembrando, parece que é ela mesmo.
 
Aproximaram-se do portão de entrada, tocaram a campainha.
 
Ficou claro para o leitor que são dois rapazes, que um deles fez um comentário e o outro respondeu. Destes quatro parágrafos, o primeiro e o último são pura narração, o segundo e o terceiro são puro diálogo.
 
Prosseguindo:
 
Passaram-se alguns segundos e em seguida apareceu uma mulher idosa na varanda do primeiro andar.
 
–  Pois não.
 
– A gente está procurando o Prof. Horácio, ele está?
 
– Ele viajou.
 
– Sabe quando volta?
 
– Não sei, pode ser daqui uma semana, ou mais.
 
– A gente trouxe uma carta para entregar a ele, pode ser?...
 
– Um momento que eu vou descer.
 
Ficaram esperando na calçada e daí a pouco a porta da frente se abriu.
 
Não acho que alguém tenha a menor dificuldade para visualizar esta cena. São “dois rapazes” no primeiro trecho, e o autor deixa claro para o leitor que não é preciso saber quem são eles, por enquanto; nem sequer lhe deu nomes. As frases que trocam entre si poderiam ter sido ditas por A e B ou por B e A, tanto faz.
 
Quando sabemos que apareceu uma mulher na varanda, reconfiguramos a cena inteira. Os travessões que se seguem indicam a mudança de interlocutor, e se o autor tiver uma habilidadezinha não precisar ficar explicando quem disse o quê. Pela situação descrita, o leitor pode deduzir que o “pois não?” foi dito pela mulher, e as demais perguntas são dos rapazes, e as respostas são dela.
 
Prosseguindo:
 
A mulher saiu, ajeitando um casaquinho sobre os ombros, porque soprava um vento frio de outono, apesar do sol. Trazia nas mãos um pacote amarrado com barbante, e aproximou-se devagar do portão, olhando para um e para o outro, alternadamente.
 
– Vocês são do curso?...
 
Os dois se entreolharam. O de barba respondeu:
 
– Somos, sim, senhora.
 
– Já viemos aqui antes – disse o de boné. – Talvez a senhora não lembre da gente.
 
– Vem muita gente aqui. Eu só sei que ele deixou essa encomenda para o caso de virrem dois rapazes do curso buscar. São vocês?
 
– Sim, sim, somos nós mesmos.
 
Ela aproximou-se do portão, devagar.
 
Quando a situação é descrita com clareza, o diálogo pode vir “a seco”, sem explicações, sem indicações. Muitos escritores adquirem um cacoete de colocar pequenos apêndices nas falas dos personagens, mesmo quando não é necessário. Fica uma coisa mais ou menos assim:
 
Os dois rapazes vieram andando devagar pela calçada, olhando as fachadas das casas, os números pregados nos muros.
 
– Acho que é aquela ali, com a grade – disse um deles.
 
– Sim, estou lembrando, parece que é ela mesmo – respondeu o outro.
 
Aproximaram-se do portão de entrada, tocaram a campainha.
 
Eu acho desnecessário esse “disse um, respondeu o outro”, mas há pessoas que preferem sinalizar dessa maneira, reiterando uma informação. Para que o leitor se sinta mais seguro, e saiba que não está interpretando erradamente o que lê. Entendo isto, mas para ganhar tempo e fornecer mais informações por linha de texto, pode-se colocar já no início as pequenas informações que diferenciam os dois personagens. Ficaria assim:
 
Os dois rapazes vieram andando devagar pela calçada, olhando as fachadas das casas, os números pregados nos muros.
 
– Acho que é aquela ali, com a grade – disse o rapaz de barba.
 
– Sim, estou lembrando, parece que é ela mesmo – respondeu o que usava boné.
 
Aproximaram-se do portão de entrada, tocaram a campainha.
 
Neste caso, a presença dos “apêndices” do diálogo se justifica mais. Tem informação sendo dada.
 
Na sequência do diálogo, esta linha aqui é importante:
 
– Já viemos aqui antes – disse o de boné. – Talvez a senhora não lembre da gente.
 
Esta linha alterna diálogo, narração e novamente diálogo. Entre as duas falas do personagem, o autor botou essa pequena frase sinalizadora, só para deixar claro quem estava falando, porque achou necessário. Se não achasse, a linha poderia vir assim:
 
– Já viemos aqui antes. Talvez a senhora não lembre da gente.
 
Mas também poderia vir desse jeito, sem perder a informação:
 
– Já viemos aqui antes. Talvez a senhora não lembre da gente – disse o de boné.
 
Qual a maneira certa? Não existe. São opções que cada pessoa vai fazendo à medida que escreve, porque um redator prefere dar ênfase a uma coisa, e outra prefere dar a outra. A única coisa realmente necessária é uma sinalização gráfica que separe de maneira clara o que é fala do personagem e o que é narração do autor. Para isso, usamos os travessões.
 
Tudo são convenções literárias e editoriais que se fixam de maneiras diferentes. Brasil, EUA e França separam de maneiras muito diferentes esses pedaços do discurso literário. A editoração norte-americana, por exemplo, costuma indicar os diálogos através de aspas, e não de travessões:
 
Os dois rapazes vieram andando devagar pela calçada, olhando as fachadas das casas, os números pregados nos muros.
 
“Acho que é aquela ali, com a grade,” disse o rapaz de barba.
 
“Sim, estou lembrando, parece que é ela mesmo,” respondeu o que usava boné.
 
Aproximaram-se do portão de entrada, tocaram a campainha.
 
Alguns escritores “americanizados” exigem que seus livros sejam marcados assim, e geralmente a editora não põe obstáculos. Rubem Fonseca era um que dava preferência a esse estilo. Mais uma vez, insisto: esas sinalizações existem para guiar o leitor. Se o leitor perceber que tal coisa é narração e tal coisa é fala, o objetivo foi alcançado.
 
Isso se torna mais importante quando o autor resolve fazer uma alternância constante entre as duas coisas, numa mesma falação do personagem:
 
A mulher idosa parou do lado de dentro do portão gradeado, olhou para um deles, depois para o outro.
 
– Estou velha mas minha vista é muito boa, e minha memória também – anunciou, de cabeça erguida. – Mas vem muita gente, como já falei, e muitas vezes o professor mesmo abre a porta para eles. – Franziu a testa. – Como vou saber se vocês são mesmo do curso?
 
É uma maneira comum de tornar o diálogo mais movimentado. Fiz mais acima a comparação de que narração e diálogo funcionam como imagem e som. Neste útimo parágrafo, o autor faz uma alternância, mostrando o que a mulher diz, e de que jeito ela está dizendo.
 
Em todo caso, é preciso manter sempre a separação com travessões, do jeito que está aí em cima. Acho a maneira mais simples e mais clara de indicar o que é uma coisa e o que é outra. De vez em quando, em livros em inglês, em francês, em espanhol, vejo parágrafos de diálogo indicados assim:
 
– Como eu disse à senhora, a gente trouxe uma carta para o professor – disse o rapaz de boné. É a cópia de um texto que eu mostrei a ele por telefone, e ele me pediu que copiasse.
 
Tem editoração de livros que faz assim: bota o primeiro travessão, para indicar que é diálogo, e no resto do parágrafo seja o que Deus quiser. A gente é que tem de interpretar se o que lê é fala ou descrição.
 
Repito: não existe uma regra universal para isso. Cada país faz de um jeito, e até cada editora faz pequenas mudanças de acordo com seu juízo e sua conveniência. Até mesmo certos autores, como o exemplo de Rubem Fonseca. 
 
E outra coisa: nem de longe estou tocando na questão do romance experimentalista, vanguardista, fora-de-esquadro, cuja natureza inclui a subversão dessas pequenas normas.
 
Na literatura brasileira de hoje, essa “dicção visual” de muitos autores experimentais se disseminou largamente. Houve uma espécie de “liberou geral”. Cada pessoa pontua do jeito que quer, mistura narração com diálogo na mesma frase, troca de interlocutor sem avisar, mostra frases e não deixa claro se o personagem pensou aquilo ou se disse em voz alta.
 
Isso vale? Por mim, vale tudo. É até bom porque exige mais da atenção do leitor. Cada novo parágrafo é um teste pra ver se ele está acordado mesmo, ou se está lendo “no piloto automático”.
 
Se vale tudo, então ao meu ver continua valendo o que valia antes, a maneira convencional, cômoda, quase consensual, de pontuar e dividir graficamente o texto.
 
Os exemplos inventados que coloquei aí acima não são sequer exemplos oficiais de editoração de texto, ofício do qual entendo pouco. São feitos do ponto de vista do autor, de quem escreve, para que o texto dele tenha mais clareza. E dê menos trabalho a quem vai, de fato, preparar o texto para publicação.
 
 
 
 
 






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