(Don Camilo e Peppone - estátuas em Brescello, Itália)
“Fernandel” era um ator franco-italiano de muito sucesso
nos anos 1950. Era um cara grandalhão, magro mas espadaúdo, com uma cara
comprida, olhos enormes, rosto feioso mas expressivo, cheio de caretas que lhe
fizeram a fama. Não era apenas um careteiro. Era um ator de recursos simples
mas bem administrados, e também se saía bem nos momentos emotivos e dramáticos.
Fernandel era o astro da série Don Camilo, uma série de meia dúzia de filmes dirigidos por Julien
Duvivier, diretor francês daquela faixa que os críticos de cinema qualificam
como “um artesão competente”. A série se chamava mesmo “Don Camilo e Peppone”,
personagens criados nos anos 1940 por Giovanni Guareschi em livros de contos
curtos, bem encadeados, que se tornaram um enorme sucesso de vendas na Itália,
sendo traduzidos em vários países e por fim levados ao cinema.
(O escritor Giovanni Guareschi, com Fernandel)
Do que trata a série? É a história de uma cidadezinha
fictícia no interior da Itália, Bassa, onde vivem esses dois amigos-inimigos,
dois homens parecidos em campos opostos: o padre católico Don Camilo e o
prefeito comunista Peppone. (No cinema, são Fernandel e Gino Cervi nesses
papéis.) Adversários ideológicos inconciliáveis, cada um faz o que pode para
ser a pedra no sapato do outro. Brigam, encolerizam-se, batem boca diante de
toda a cidade, mas na hora em que um está em apuros, pode contar com o outro.
(Não sem ironia; não sem piadas.)
O filme no YouTube:
Vi agora no YouTube (está lá, com legendas em português) A Volta de Don Camilo (1953), em que
Duvivier conta as aventuras e trapalhadas desta dupla de personagens meio
ingênuos, meio cínicos, que têm algo de nordestinos embora sejam (como diria um
crítico de cinema) “visceralmente peninsulares”.
Há um aspecto das aventuras de Don Camilo que sempre
achei simpático. Ele conversa com Jesus Cristo, o Jesus que está no crucifixo
do altar principal de sua igrejinha. Ele pergunta, e Jesus responde, ou
vice-versa. Sempre quando estão a sós, é claro, para que ninguém pense que o
padre da cidade está ficando doido.
E uma coisa que sempre simpatizei quando comecei a ler os
livros de Guareschi foi que nesses livros Jesus Cristo falava como uma pessoa.
Já li (já tentei ler) muito livro religioso. Toda vez que Jesus abre a boca,
vem um sermão, vem uma retórica de seminário propedêutico, vem uma lição de
moral. O Jesus de Guareschi era (pelo menos aos meus dez ou doze anos) um raio
de coloquialismo e de bom senso no meio daquele dôminos-vobisco todo.
No primeiro conto-capítulo de O Regresso de Don Camilo (Difel/Bertrand, 1953, trad. A. Dias da
Costa), a gente já vê esse diálogo:
Don Camilo ergueu os olhos para o Cristo do
Altar-Mor e disse:
– Quanta coisa há no mundo fora dos eixos!
– Não concordo – respondeu Jesus. – No
mundo, à parte os homens, tudo está perfeitamente certo.
Don Camilo deu uns passos para baixo e para
cima e parou em frente do altar.
– Jesus, se eu contar um, dois, três,
quatro, cinco, seis, sete, e continuar contando sempre durante um milhão de
anos, chegarei ao fim?
– Não – respondeu Jesus. – Procedendo assim,
serias como um homem que, tendo traçado na terra um círculo, começasse a andar
em volta dele, dizendo: “sempre quero ver quando chego ao fim”. Claro que nunca
chegaria.
Essa conversa desse Cristo não tinha nada a ver com as
conversas religiosas que eu ouvia na época. Simpatizei com ele porque era na
linha de O Livro da Natureza de Fritz
Kahn ou O Universo e o dr. Einstein
de Lincoln Barnett, onde eu lia: “O universo, apesar de finito, não tem
limites.” Como os números. Como o círculo.
(Gino Cervi, como Peppone)
Do lado oposto desse pequeno mundo, está o prefeito
Peppone e seu bigodão stalinista, parecido com o de certos coronéis sertanejos
que eu conheço. Peppone se esforça para ser um obediente operário do Partido,
mas as complicações de administrar uma cidade de verdade sabotam suas teorias o
tempo todo. Ele é uma dessas figuras meio trapalhonas, meio solenes, que tendo
chegado ao poder descobre o quanto é bom ser oposição e não ter que resolver um
milhão de pepinos trabalhistas, sanitários, financeiros, policiais e
meteorológicos.
Os dois esbravejam um contra o outro, mas volta e meia
Peppone chega na igreja à sorrelfa, agarrando o chapéu com as mãos, pedindo a
Don Camilo que quebre um galho com um paroquiano qualquer. Volta e meia Don
Camilo vai à casa do prefeito, cumprimenta a esposa, toma um café e pede ao
comunista que “pegue leve” em tal ou tal assunto que está lhe trazendo
problemas.
Uma coisa interessante na literatura (na narrativa, em
geral) é quando temos dois personagens amigos-inimigos. Não é qualquer dupla
dialética que se encaixa nessa condição. Duplas famosas como Sherlock Holmes
& Watson, Don Quixote & Sancho Pança, têm a sua dinâmica de aproximações
e repulsas, mas não pertencem a grupos antagônicos.
As comédias despretensiosas de Don Camilo e Peppone podem
parecer um pouco ingênuas e datadas, numa época em que religião e política vivem mais uma
vez na base do risca-faca. As mil e uma trapalhadas em que cada um dos dois se
mete por causa do outro mostram esse jogo de atrações e repulsões. Nessas
histórias, dois indivíduos simples, sem grandes sofisticações teóricas, vindos
basicamente do povo, e cheios de boas intenções, precisam manter fidelidade aos
princípios de uma ideologia que defendem, e ao mesmo tempo manter-se fiéis aos
próprios valores pessoais.
Quem quiser um nível mais aprofundado dessa discussão
pode consultar o livro Em que creem os
que não creem?, onde em vez de Don Camilo e Peppone temos a erudita
discussão entre o Cardeal Carlo Maria Martini e o romancista Umberto Eco. E que
comentei aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/08/1212-crenca-de-quem-nao-cre-3112007.html
Sempre notei a semelhança física entre o Fernandel e o Otelo Zeloni. Parecenças.
ResponderExcluirÓtima dica, ótima resenha.
ResponderExcluirVi na tv no final dos anos 50, vou ter que rever.
Além do Zeloni, o Walter D’Ávila também tem o biotipo.
Se você notou a semelhança, é porque sabe que Zeloni interpretou Don Camillo na TV Tupi, por volta de 1972. E me parece que não foi a primeira vez.
ResponderExcluir....
Sempre notei a semelhança física entre o Fernandel e o Otelo Zeloni. Parecenças.