sexta-feira, 7 de maio de 2021

4701) O dilema do prisioneiro (7.5.2021)

 

(Douglas Hofstadter)
 
É uma história com numerosas variantes, e vou contar uma das mais simples.
 
Você é um indivíduo muito rico, e deseja comprar clandestinamente alguma coisa, numa negociação que precisa ser feita às escondidas, sem que ninguém tome conhecimento dela a não ser você e o vendedor. Podem ser jóias roubadas, por exemplo. O preço é combinado entre os dois, de maneira justa.
 
Vocês combinam também a maneira de realizar a transação. Será à noite, num lugar oculto, discreto; digamos, num ponto específico de uma floresta. Cada um levará uma bolsa fechada. Você leva na sua bolsa o dinheiro, e o vendedor leva as jóias na bolsa dele. Na hora combinada, cada qual deposita sua bolsa num local, e vai ao local onde o outro depositou a sua; cada um pega o que lhe cabe, e vai embora.
 
Tudo combinado. Mas aí você começa a pensar. Porque... Se você puser o dinheiro combinado na bolsa que vai levar, e o vendedor fizer o mesmo com as jóias, ambos irão para casa felizes. Foi realizada a transação que cada um considerou satisfatória.
 
Só que numa situação assim, você pensa: “E se eu levasse uma bolsa vazia? Deixaria a bolsa no canto combinado, iria pegar a bolsa do cara com as jóias, e sairia lucrando duplamente!”. De fato, é uma tentação. E você pensa mais. “E tem outra. Se o cara se meter a esperto e deixar para mim uma bolsa vazia... não vou ter prejuízo nenhum, porque a minha também estava vazia!”. 
 
É um raciocínio tão óbvio que você não pode deixar de pensar; “Ora sebo, o melhor então é levar logo uma bolsa vazia, porque desse jeito ou eu ganho, ou ‘empato’, mas não tenho como sair perdendo.”
 
O que você talvez não pense, no meio de tanto entusiasmo e esperteza, é que o vendedor a essa hora pode estar pensando exatamente a mesma coisa, e tomando exatamente a mesma decisão. E é bem provável que, ao invés de uma transação onde ambos vão para casa com o que queriam (você com as jóias, ele com a grana), ambos voltarão para casa de mãos vazias, numa transação frustrante onde o único consolo é pensar: “Ele não me passou a perna”.
 
Essa situação básica, como falei, tem muitas variantes, e o termo técnico para ela é “O Dilema do Prisioneiro”, por causa de uma variante famosa onde a mesma questão é colocada em termos de dois prisioneiros que podem delatar-se mutuamente (ou não) para ganhar a liberdade como prêmio.
 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Dilema_do_prisioneiro
 
O Dilema do Prisioneiro mostra, entre muitas outras lições, os limites da Lógica para governar o comportamento humano. Muitos governantes, filósofos, sábios etc. afirmam que usarão a Lógica para tomar as suas decisões mais graves. Exemplos como o Dilema do Prisioneiro, no entanto, mostram que a Lógica, por mais que pareça ser tão abstrata quanto a Álgebra ou a Geometria, ou talvez por isso mesmo, é incapaz de nos indicar as melhores ações dentro do quadro das relações humanas.
 
Em qualquer disputa, qualquer jogo, é essencial que o jogador seja capaz de pressupor corretamente o pensamento e as intenções do outro, para poder antecipar-se a ele. Edgar Allan Poe faz um arrazoado muito metódico dessa questão em “A Carta Roubada” (1844). Neste conto, o detetive C. Auguste Dupin usa o jogo de “par ou ímpar” para fazer essa análise, e parte dela para uma comparação entre o raciocínio da polícia e o raciocínio de um criminoso.


(Edgar Allan Poe)
 
É nesse aspecto, o de adivinhar o pensamento do oponente, que a Lógica muitas vezes vai para o espaço, porque os seres humanos são capazes de agir logicamente, sem dúvida, mas nem sempre o fazem, porque têm mil e uma motivações paralelas que são mais fortes do que a Lógica. Têm emoções, têm lealdades, têm superstições, têm maneiras contraditórias de raciocinar, têm deformações ou bloqueios culturais, têm fraquezas de espírito... e, por conta de um ou mais desses fatores, acabam agindo sem a menor Lógica, quando era a Lógica que se esperava deles.
 
A Economia é uma ciência que muitas vezes mete os pés pelas mãos porque conta com reações e comportamentos lógicos dos governos, mercados, compradores, vendedores, empregadores, empregados, etc.  Ora ora!... Quando sabemos que nossa sociedade é uma máquina eletrônica de impor vetores não-lógicos de comportamento a todo mundo.
 
Um aspecto curioso da vida humana é o fato de que nunca sabemos o que as outras pessoas estão pensando. Podemos apenas ouvir o que elas dizem, ouvir o que os outros dizem delas, ver como se comportam, comparar esse comportamento com o delas mesmas em outras situações ou o de outras pessoas em situações parecidas... e com isso tomar nossa decisão.
 
Isto é importantíssimo no romance detetivesco, a partir de Poe, porque o detetive, que procura pensar logicamente, deve sempre supor o mesmo do criminoso, mas deve admitir também que o criminoso pode ter agido de forma ilógica, por algum motivo que não foi possível descobrir ainda.
 
Nos romances de espionagem, ocorre algo parecido com a nossa troca sub-reptícia de bolsas misteriosas na escuridão da floresta. Em livro de espionagem, é preciso partir do princípio, o tempo inteiro, de que o outro lado deve estar mentindo. Espião é um sujeito que mente o tempo todo.
 
Como naquela piada da URSS estalinista. Dois caras, Ivan e Pavlov, se encontram na estação de trem, em Kiev. Ivan pergunta: “Para onde está indo?”  Pavlov responde: “Para Leningrado.” Ivan pensa: “Ele diz que está indo para Leningrado para que eu pense que ele está indo para Moscou. Então, deve estar indo é para Leningrado mesmo, esse maldito mentiroso.”
 
As variantes do Dilema do Prisioneiro admitem uma infinidade de situações que convergem todas para um problema básico. Se todo mundo agisse de boa fé e partisse do princípio de que o interlocutor está agindo de boa fé, ambos sairiam lucrando. Mas se em algum momento um dos dois resolver agir de má fé, vai lucrar muitíssimo mais.



O exemplo das “bolsas na floresta”, que estou citando, é de Douglas Hofstadter em sua coluna do Scientific American (maio de 1983), recolhida em seu livro Metamagical Themas (New York, Basic Books, 1985). Esse raciocínio evolui numa direção matemática onde todas as combinações de ações podem ser computadas e receber valores numéricos. Existem por aí incontáveis manuais de “Teoria dos Jogos” que analisam exatamente tais situações.
 
Posso estar errado, mas diante desses exemplos penso que em numerosas negociações humanas (no comércio, na política, no casamento, nas negociações de trabalho etc.) a certa altura acaba se reproduzindo essa questão. Se ambos agirem de boa fé, cada um ganhará 5. Se um dos dois agir de má fé, este ganhará 10 e outro fica sem nada. Como as pessoas escolherão agir?
 
E aí desembocamos num detalhe psicológico que me parece importante. Numa sociedade tranquila, pacificada, não direi que seja utópica nem ideal, mas em uma situação que podemos considerar “normal”, as pessoas tendem a confiar um pouco mais nas outras e agir de acordo. “Eu vou entrar nesse negócio de boa fé, e acho que esse Fulano aí vai fazer o mesmo, afinal se fizermos isso vai ser bom pros dois.”
 
Mas, e quando isso acontece numa sociedade partida, dividida, conflagrada, de ferozes disputas sociais, ideológicas, de pesados insultos morais de parte a parte, de fortes manifestações de desprezo de parte a parte, de antagonismo explícito, rancoroso?! 
 
Em situações assim, o mais provável é que ninguém confie em ninguém. Cada um já insultou e já foi insultado, cada um já perseguiu e já foi perseguido, cada um já ameaçou e já foi ameaçado. Cada um imagina que o outro entrará numa negociação com o máximo de má fé que lhe for possível.
 
Por que? Porque essa é a maneira mais Lógica de agir.












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