terça-feira, 4 de maio de 2021

4700) Cinco P Q P (4.5.2021)


1
Você dá uma festa de aniversário em sua casa, que é espaçosa, tem terraços, tem jardim. Chama uns cinquenta ou sessenta pessoas, só amigos, recebidos à porta com abraços demorados e sorrisos cheios de emoção. A bebida está gelada, a música é escolhida pelos mais capazes, o vozerio é ensurdecedor, você desfila de sala em sala, de grupo em grupo: “E aí? Tudo bem? Estão se divertindo? Se precisar de alguma coisa me chama!”, aí num certo momento alguém pega você pelo braço e diz: “Cadê Fulano? Ele vem?”. Um balde de água gelada é derramado lentamente por dentro de sua camisa, ao longo da coluna vertebral. Você fecha os olhos com força e constata: “Não chamei Fulano”.
 
2
Você programa uma viagem de férias, o sol do mar do Caribe, uma praia paradisíaca, uma pousada acolhedora com orçamento acessível, e no dia o casal se atarefa, faz as bagagens, arruma com todo cuidado a mala do bebê, separa os chocalhos e os palhacinhos, os leites, os remédios, confere o horário do voo, o voucher do traslado, fecha os basculantes, desliga os eletrodomésticos, põe tudo no Rádio Táxi, há um suspense no engarrafamento, perde-se ali meia hora, mas chega-se no derradeiro prazo, ufa, essa foi por pouco, e então a moça no balcão ergue os olhos bem pintados, dá o sorriso formal e diz: “E a autorização do juizado de menores?...”
 
3
Ao sair para viajar, na tarde de sexta-feira, ele pôs a mala no chão junto à porta, entrou na cozinha, abriu a torneira da pia e constatou que a água tinha de fato sido desligada na coluna do prédio, para um conserto qualquer. O celular tocou, ele atendeu às pressas; era o carro que já o esperava embaixo. Desceu rapidamente. Foi um fim de semana agradável, praia, lazer, amigos, ida a clube, ida a boate. Voltou na segunda-feira de manhã, subiu pelo elevador. Ao colocar a chave na fechadura já ouviu lá dentro o barulho. Abriu a porta. O jorro dágua ficou mais audível, e a poça já era bem larga, embebendo o tapete da sala, enquanto na cozinha o ralo da pia mal conseguia absorver a água generosamente derramada pela torneira aberta. Ele murmurou algo entredentes.
 
4
Médico bem sucedido, conceituado, recebeu convite para palestrar num evento de saúde numa cidade interiorana, a convite de um ex-colega de Faculdade que depois de formado retornara para lá, onde nascera. Há anos não se encontravam. Voo cansativo, algumas conexões, chegou lá durante a madrugada, cansado, sonolento. Ao emergir no saguão do aeroporto, alguém o reconheceu e ergueu o braço, saudando-o. Ele deu boa-noite, entregou a mala, avisou que estava com dor de cabeça e acomodou-se no assento traseiro. O motorista não puxou conversa e ele chegou a cochilar no trajeto. Ao parar diante do hotel lembrou-se de perguntar pelo colega. “E Fulano de Tal? Vou encontrar com ele amanhã?...”  O motorista virou-se, olhou-o nos olhos e disse: “Sou eu.”
 
5
O maestro, idoso e iracundo, está ao piano, enquanto diante do palco agita-se a fila de mocinhas adolescentes para o teste de cantora. A cada chamado, sobe uma e cantarola um minuto da música combinada, enquanto ele a acompanha. Quando termina, ele a despede com um aceno e diz apenas: “Próxima”. Vem uma, outra, outra... Sobe uma moreninha tímida; ele dá o acorde inicial e ela entra cantando, até o fim. Quando termina ele ergue a mão em advertência e diz: “De novo”. Ela titubeia, mas se firma, ouve o acorde e repete tudo. Ele faz mais um sinal: “Só mais uma”. Ela canta tudo de novo, ele acompanha com um floreio final da mão direita, e o teatro inteiro o escuta dizer baixinho: “Vai ser afinada assim na puta que pariu”.





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