Este antigo faroeste dirigido por Elliot Silverstein, Dívida de Sangue (“Cat Ballou”, 1965) é
uma curiosa mistura de faroeste, comédia e musical. Aquilo que a gente chamava
de “um filme leve”, onde as coisas acontecem com uma certa dramaticidade mas a
gente sabe que não existe a menor possibilidade de não ter um final feliz,
onde as pessoas simpáticas são recompensadas e as antipáticas sofrem o devido
castigo.
Foi o primeiro filme que vi com Jane Fonda, bem no começo
de minha carreira de cineclubista, e um dos primeiros em que comecei a aplicar de forma conscienciosa os ensinamentos de livros preciosos como Elementos de Cinestética do Padre Guido
Logger ou A Linguagem Cinematográfica de Marcel Martin.
Cat Ballou é a filha única de um fazendeiro viúvo, que é
assassinado por uma questão de terras, por um pistoleiro a mando dos ricaços
locais. Ela junta um grupo de amigos jovens, contrata um pistoleiro para se
vingar, consegue, mas continua a meter-se em sarilhos e é condenada à forca.
Três minutos antes do fim do filme, escapa espetacularmente.
Lembro que na época a gente chegava a discutir se aquilo
era um faroeste (porque a ambientação é de cowboys), uma comédia (porque há uma
porção de cenas engraçadas), um filme romântico (porque um dos amigos de Cat
procura conquistá-la durante o filme inteiro, e consegue) ou um musical (porque
o filme é narrado musicalmente, com dois tocadores de banjo cantando
cordelmente a vida de Cat Ballou).
Pode ter sido um dos filmes em que comecei a entender que
os gêneros literários ou cinematográficos existem como conjuntos de elementos a
que as obras podem recorrer ou não. Não faz sentido dizer “o filme X pertence
ao gênero Y”. Um filme não “pertence” a nada, um filme usa elementos de um
gênero, ou de mais de um, conforme a conveniência de quem o escreve e dirige.
Trinta anos depois eu estaria discutindo se Alien, o 8º. Passageiro, era um filme de
horror ou um filme de ficção científica. E constatando que para muitas pessoas
a única coisa importante para se saber de um filme é “A Que Gênero Ele Pertence”,
e uma vez estabelecido isso, pode-se passar adiante e ir falar de outro
assunto.
Revi agora Cat
Ballou, meio achando que estava perdendo meu tempo em rever algo que já assisti
duas ou três vezes quando tinha 17 anos. Melhor ir ver filme novo, não é mesmo?
Foi bom ter visto, para apreciar melhor o lado cordelesco
do filme. A crítica norte-americana sempre se refere aos músicos que narram a
história (Nat King Cole e Stubby Kaye) como “uma espécie de coro grego”, que
descreve situações, avisa o que vai acontecer e depois comenta o que aconteceu.
Acho curioso que essa crítica se detenha tão pouco sobre os “cordelistas” do
tempo do faroeste, que estão presentes (e com presença importante) em tantos
filmes.
São os poetas ambulantes que escrevem em revistinhas
baratas (chapbooks) as aventuras dos Billy
The Kid e dos Bat Masterson de sua época. Fazem o que no Nordeste faziam
Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista e João Martins de Athayde
narrando as proezas e as crueldades de Antonio Silvino ou Lampião.
Logo no começo do filme vemos Cat Ballou sendo embarcada
no trem por uma tia protetora, e abrindo um livrão escuro, encadernado, que ela
comenta com o vizinho de cabine ser um volume de poesias de Tennyson. Segundos
depois, escapa de dentro do livrão um chapbook
barato onde se contam as aventuras do pistoleiro Kid Shelleen. Lá pelo meio do
filme, depois que o pai é assassinado, ela reencontra o cordel e é através dele
que se dispõe a contratar Kid Shelleen para executar sua vingança. Chega-lhe à
porta um pistoleiro andrajoso, bêbado, um pistoleiro-pastelão. O desencanto
dela é o de todos que confundem a lenda impressa com a vida real.
Stubby Kaye e Nat King Cole, por sua vez, são personagens
que eu acho mais brechtianos do que gregos, porque eles estão de banjo em punho
no meio da rua, dentro das salas, diante do cadafalso, a poucos metros dos
personagens da história que narram. Estão cantando “The Ballad of Cat Ballou”
numa mistura sedutora de improviso (porque os fatos que eles narram estão
acontecendo naquele instante, à sua volta) e de balada tradicional (porque é
este o ponto de vista narrativo).
E com isso eles colocam o filme no gênero que invento
agora, o “Cordel do Faroeste”, e quem achar que é exagero assista Os Imperdoáveis (1992, “Unforgiven”) de
Clint Eastwood, Um De Nós Morrerá (1958,
“The Left Handed Gun”) de Arthur Penn e outros. Há sempre um cordelista de lápis e papel em punho, acompanhando os indivíduos que fazem História.
Outro aspecto interessante é a distribuição de
personagens masculinos servindo como ajudantes a uma personagem feminina que tem
uma jornada a cumprir. Parece ser um arquétipo narrativo, não sei se típico da
narrativa norte-americana.
Tomei consciência disso pela primeira vez lendo uma
entrevista de Karen Joy Fowler (a autora de The
Jane Austen Book Club) em que ela comentava seu (excelente) romance
meio-fantástico, Sarah Canary (1991).
Esse livro transcorre no Oeste norte-americano, na mesma época de Cat Ballou.
Nele aparece “do nada” uma mulher estranha, que não entende inglês e não fala
nenhuma língua conhecida. Ela ganha o apelido de “Sarah Canary” porque apenas
emite uns piados de pássaro.
Essa mulher é recolhida a um asilo, foge, e passa a ser
protegida por um grupo de indivíduos jovens, meio marginalizados: um chinês, um
esquizofrênico paciente do asilo e um agente postal. Eles viajam a pé, são
perseguidos, metem-se em aventuras, e aqueles três caras estão protegendo, de
maneira até inexplicável para eles, aquela mulher feia, estranha, e que não se
comunica com eles. (O leitor de FC deduz que ela é uma alienígena extraviada.)
Numa entrevista, Karen Joy Fowler comentou que concebeu
esse estranho grupo de pessoas tendo como referência os personagens de O Mágico d Oz: A menina Dorothy, cercada
pelo Homem de Lata, o Espantalho e o Leão Medroso. E disse achar interessante
que nenhum crítico tivesse atentado para esse fato.
Bem, a Internet atentou recentemente para o fato de que
existe uma distribuição parecida de personagens em Star Wars: a princesa Leia, cercada por Han Solo, Chewbacca e
C-3PO.
Não duvido haver uma longa lista de histórias em diversos
gêneros (fantasia, cavalaria, etc.) em que uma personagem feminina aparece
acompanhada por “galantes cavaleiros” dispostos a tudo por ela. É o caso de Cat
Ballou, que conta com a ajuda e a companhia afetiva de três rapazes: o "tio", o "sobrinho" e o índio, que a ajudam a contratar o pistoleiro Kid Shelleen e
consumar sua vingança.
Lembro que vi esse filme na tevê, quando tinha uns 13 ou 15 anos, numa madrugada (eu adorava ficar vendo filmes até a programação acabar, era uma grande vitória). E foi um espanto! Nunca tinha visto uma mulher ser protagonista num faroeste. E aqueles dois músicos eram demais! Não sabia que valia usar aquilo. Para mim foi uma revelação, uma revolução estética. É engraçado como, às vezes, uma obra que não faz pose de vanguarda pode ir longe e quebrar padrões.
ResponderExcluirEntendi... O Han Solo é o espantalho...
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