domingo, 4 de abril de 2021

4690) Isak Dinesen e a nova narrativa (4.4.2021)

 


Uma das escritoras mais elegantes que conheço (e pode incluir o contingente masculino nessa avaliação) é a dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962), que usava o pseudônimo de “Isak Dinesen” para assinar seus contos densos, refinados.  Ela geralmente aborda um mundo oitocentista onde as vidas transcorrem como rios largos e vagarosos. Sua ficção lembra certos filmes de Luchino Visconti onde diferentes camadas do tempo se superpõem num mesmo espaço impregnado de memórias aristocráticas (O Leopardo, Violência e Paixão)
 
Além de escrever bem, ela reflete sempre sobre a natureza da narrativa, o ato de contar histórias, o ato de ouvi-las. Durante anos trabalhou num romance que se chamaria Albondocani. Morreu sem concluí-lo; mas por sorte seus personagens têm a mania de contar longas histórias uns aos outros, e sete delas estão reunidas (junto com outros trabalhos) em seus Last Tales (1955).
 
“The Cardinal’s First Tale” registra a longa conversa entre um cardeal idoso e uma dama, sua amiga, que o interroga sobre sua família e sua criação. A resposta dele é longa e múltipla, com variadas revelações sobre o passado; mas a certa altura a dama lhe diz (tradução BT):
 
– Vossa Eminência respondeu minha pergunta contando-me uma história na qual meu amigo e professor é o herói. Vejo com clareza o herói da história, quase que luminoso, e num elevado plano. Mas meu mestre, meu conselheiro e meu amigo continua tão afastado quanto antes. Não parece humano aos meus olhos e, ai, não consigo dizer que não me causa temor.
 
O Cardeal, cujo estilo narrativo é cheio de volutas e mandalas, comenta:
 
– Madame, eu lhe contei uma história. Histórias têm sido contadas desde que a fala começou a existir, e sem histórias a humanidade teria perecido, como pereceria sem água. A senhora vê os personagens de uma história real com clareza, quase luminosos, num plano elevado, e ao mesmo tempo ele podem não lhe parecer bem humanos, podem até causar-lhe medo. É assim que são as coisas. Mas hoje, Madame, eu percebo uma nova arte da narração, uma nova literatura, nova categoria das belas-letras, alvorecendo sobre o mundo. Já está entre nós, sem dúvida, e tem ganho a simpatia dos leitores do nosso tempo. E essa nova arte literária irá, em benefício dos personagens individuais da história, e com o intuito de manter-se próxima deles, sem medo, essa literatura estará disposta a sacrificar a história em si.
 
“Os indivíduos dos novos livros, novos romances, estão tão próximos ao leitor que é como se um calor corporal nos fluísse deles; o leitor os trará para perto de si e os tornará seus companheiros, amigos, confidentes. E à medida que aumentar essa troca de empatias, a história propriamente dita irá perdendo terreno, perdendo peso, e acabará evaporando-se, como o buquê de um vinho nobre cuja garrafa tenha sido esquecida aberta.
 
A conversa entre os dois prolonga-se bem mais, mas que isto nos baste. Dinesen constata a transição entre os contos tradicionais e o romance moderno. Nos antigos contos, a história conduzia os personagens, que eram meras funções narrativas, meros “actantes”, como de diz: eles desempenhavam as ações que a história exigia deles.
 
No romance moderno, que adquiriu espessura psicológica, sociológica, emocional, intelectual, os personagens são cada vez mais tridimensionais, compactos, ricos de substância interior, ricos em contradições e paradoxos – parecem-se cada vez menos com os personagens tradicionais, e cada vez mais com pessoas de verdade.
 
As teorias da escrita reconhecem que existem diferentes tipos de autor, de livro, de leitor, conforme as preferências, os recursos, as habilidades e as limitações de cada um. O elenco de tipos é variado, mas para efeito dessa comparação de Isak Dinesen podemos reconhecer que existem os criadores de histórias e os criadores de personagens.
 
No primeiro caso, é a história (o enredo, a sucessão de fatos contados) que desperta o interesse. Os personagens não têm grande profundidade, muitas vezes são designados apenas por um nome, uma descrição (o Mercador, o Professor, a Princesa), uma inicial. Nada sabemos sobre seu passado, sua infância, sua vida interior. Ele está ali para participar da história. O marujo Sindbad, por exemplo: nada sabemos de sua história pessoal ou sua psicologia profunda; estamos ali interessados no que vai lhe acontecer na próxima viagem.
 
No segundo caso, o autor cria personagens que têm essa espessura semelhante à de um ser humano, com motivações, sonhos, antipatias e simpatias, com um passado, com um projeto de futuro, com idéias próprias sobre o mundo. E com esse personagem o autor vai criando uma história feita de seus embates com o mundo em volta. Dom Quixote é um bom exemplo: ele é tão interessante que qualquer coisa que aconteça com ele torna-se interessante.


Nesse conto do Albondocani, que imagino situar-se no século 17 ou 18 (nunca se sabe; essas ambientações aristocráticas parecem existir numa espécie de animação suspensa fora do tempo e do espaço), discute-se a passagem de uma literatura para a outra, ou melhor, o surgimento de um novo tipo, visto que a história antiga, a história-pela-história, não dá nenhuma mostra de desaparecer, e em 2021 continua lépida e saltitante.
 
Ian Watt (A ascensão do romance) observa no romance inglês do século 18 essa guinada definitiva na direção do realismo da observação, da descrição e reprodução fiel dos ambientes individuais e coletivos, da psicologia profunda dos personagens.
 
Comentando as obras de Daniel Defoe, Samuel Richardson e Henry Fielding, três dos fundadores do romance inglês, ele observa:
 
O propósito primordial  [desse novo realismo psicológico] consiste em fazer as palavras trazerem-nos seu objeto em toda a sua particularidade concreta, mesmo que isso lhes custe repetições, parênteses, verbosidade.
 
As narrativas tradicionais (e podemos ver as formas mais puras delas nos contos populares, na literatura oral, nos conjuntos de narrativas como As Mil e Uma Noites ou os Contos de Canterbury) pareciam existir num mundo imutável governado pelos deuses, numa Terra que era o centro imóvel do universo. O indivíduo não era ninguém ali. Na nova literatura, no novo realismo, ele é tudo:
 
Tanto as inovações filosóficas quanto as literárias devem ser encaradas como manifestações paralelas de uma mudança mais ampla – aquela vasta transformação da civilização ocidental desde o Renascimento que substituiu a visão unificada do mundo da Idade Média por outra muito diferente, que nos apresenta essencialmente um conjunto em evolução, mas sem planejamento, de invidíduos particulares vivendo experiências particulares em épocas e lugares particulares.
(A Ascensão do Romance, Companhia das Letras, trad. Hildegard Feist)
 
A história da prosa de ficção tem sido um movimento de idas e vindas em que enredo e personagens, longe de serem extremos opostos, são naturezas distintas, e quando uma narrativa se põe em movimento a história leva o plano de significação para o coletivo, e o personagem o traz para o individual. E assim cada um acaba enriquecendo o outro.



 





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