segunda-feira, 19 de outubro de 2020

4632) Primeiras Estórias: "A terceira margem do rio" (19.10.2020)

 

 
Em 12 de abril de 1961, o cosmonauta soviético Yuri Gagárin tornou-se o primeiro homem a viajar no espaço, no famoso voo orbital da nave Vostok 1.
 
Em 5 de maio de 1961, Alan Shepard tornou-se o primeiro norte-americano a igualar esse feito, na cápsula Freedom 7; seu voo foi suborbital, mas foi o primeiro em que o piloto foi capaz de controlar manualmente o próprio voo.
 
Entre estas duas datas, em 15 de abril de 1961, João Guimarães Rosa publicou em O Globo o conto “A Terceira Margem do Rio”, a ser incluído, depois, no livro Primeiras Estórias (1962).
 
Este conto é de vez em quando citado como exemplo da temática da ficção científica na obra de Rosa. No derradeiro prefácio de Tutaméia (1967), “Sobre a Escova e a Dúvida”, ele comenta a origem de várias “idéias” para seus contos e diz:
 
“A Terceira Margem do Rio” (Primeiras Estórias) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. (p. 157)
 
Fausto Cunha, uma das figuras emblemáticas da ficção científica brasileira, conta em seu prefácio “A Ficção Científica no Brasil: um Planeta quase Desabitado”, no livro No Mundo da Ficção Científica de L. David Allen (São Paulo: Summus, 1977 ?):
 
Guimarães Rosa considerava “A Terceira Margem do Rio” um conto na linha do fantástico e certa vez, em conversa comigo, estranhou que eu, um cultor da science fiction, não tivesse reagido com mais entusiasmo a essa história, que conheci de primeira mão (Rosa às vezes me telefonava para eu ir ouvir a leitura de seus contos no Itamarati, ali na Rua Larga). Chegou a insinuar que a escrevera pensando em mim como leitor, o que evidentemente não tomei ao pé da letra. (pág. 10)
 
Existem mil leituras e interpretações do conto de Rosa, todas legítimas, dado o grau de nitidez factual da história, e de abstração subjetiva. Sabemos tudo que aconteceu, mas, por quê? Para quê?
 
Uma interpretação curiosa que li há pouco tempo é a de Astrid Masetti Lobo Costa, em Veredas de Rosa II (Belo Horizonte: PUC-Minas, 2003), onde ela compara o texto de Rosa ao Bartleby (1853) de Herman Melville, ambos sobre “o inexplicável e inquietante afastamento de um personagem do convívio com outras pessoas”.
 
Na mesma coletânea de ensaios da PUC-Minas, Rosa Maria Graciotto Silva cita uma carta de Guimarães Rosa para seu tradutor francês J. J. Villard, onde ele diz do livro Primeiras Estórias:
 
Só aparente e enganosamente é que ele se finge de simples, de livrinho singelo. Muito mais que uma coleção de estórias rústicas, o Primeiras Estórias é, ou pretende ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra, nele, assume pluralidade de direções e sentidos, tem uma dinâmica espiritual, filosófica, disfarçada. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista.
 
A carta é transcrita de João Guimarães Rosa: Homem Plural, Escritor Singular (Rio: Ágora da Ilha, 2001), de Edna Nascimento e Lenira Covvizzi.
 
O conto pode ter se inspirado parcialmente nessa grande aventura da humanidade que Rosa estava presenciando. Um clima de excitação internacional que não parava de ser alimentado desde que os soviéticos puseram o Sputnik I em órbita em 1957, e que agora se ampliava com a possibilidade de mandar um ser humano na viagem mais arriscada de todas.
 
Temos em nossa mente a imagem das espaçonaves como coisas gigantescas do tamanho de um transatlântico. Nos EUA vi num museu uma réplica da cápsula em que Alan Shepard fez o seu voo sub-orbital. É uma coisa do tamanho de um fusca. Posso imaginar o que era estar sanduichado lá dentro (o cara mal tem espaço para esticar as pernas), ser jogado solto no espaço a 180 km de altura e voando feito uma pedra-de-balieira quase 500 km de extensão total antes de cair de volta no Oceano Atlântico.

 
O fato de que era um piloto experimentado torna a situação ainda mais arrepiante, porque ele sabia de todos os riscos envolvidos – eu, por exemplo, não sei.
 
Guimarães Rosa criou um conto em que um indivíduo constrói uma canoa especial para si mesmo e parte na direção do rio e nunca mais volta. Por quê? Para quê? Ele desaparece para sempre nesse rio “largo, de não se poder ver a forma da outra beira”. Não conheço melhor descrição do espaço sideral.
 
Ele não perde contato com a terra, no entanto. O filho (que narra a estória) é vigilante e fica fiel ao sonho do pai, mesmo quando todo mundo critica o velho, diz que ficou doido, etc. O filho mantém a retaguarda e a certa altura passa a alimentar o pai, levar-lhe mantimentos, aceitando que ele permaneça nesse espaço, mas alguém da terra precisa lhe enviar abastecimento.
 
O pai não volta, e este é mais um dos contos de Guimarães Rosa em que se começa com uma pergunta mas não se termina com uma resposta, se propõe um mistério e deixa-se o mistério pairando no ar após o fim do conto. O conto abre uma porta que não volta a se fechar.
 
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.

 
("2001, uma Odisséia no Espaço", 1968)

É como aquelas viagens das naves-geração da ficção científica, uma viagem sem volta, numa espaçonave-cidade onde as pessoas morrem e nascem durante séculos, sabendo que não voltarão para a Terra; e quando eventualmente alcançam o seu destino, quem chega lá são os bisnetos ou tetranetos dos tripulantes que partiram.



 
O pai parte, o filho fica na margem, tocaiando, pastorando. O vínculo entre os dois me lembrou O Tempo das Estrelas (“Time for the Stars”, 1956) de Robert Heinlein. Uma nave sai para colonizar o espaço, e o contato com a Terra é feito através de dois irmãos gêmeos telepatas (o livro propõe que a telepatia é mais rápida que a luz). Devido à dilatação do tempo nas viagens espaciais, o gêmeo que está no espaço envelhece muito lentamente e o que fica na Terra envelhece, morre, e é com seus descendentes que o outro passa a se comunicar.
 
Não é exatamente o caso do conto de Rosa, em que a canoa do pai acaba se parecendo mais com uma Estação Orbital, que nem vai embora para os confins do Universo nem desce para a Terra – fica só ali, boiando.
 
Outro aspecto importante é o título do conto. A “terceira margem do rio” é uma idéia que sugere a existência de uma dimensão a mais. Um rio é como uma linha reta traçada num papel branco, dividindo aquele espaço em margem de lá e margem de cá. Muitos analistas do conto chamam a atenção para esse curioso adjetivo: “terceira”. Lembram que um rio não tem primeira e segunda margens; não há ordem entre elas; são duas, apenas. Podemos pensar apenas que a “primeira” é aquela em que estamos, a que é subjetivamente mais importante, ponto de referência.
 
O que não deixa de lembrar a velha piada do bêbado, mais uma vez registrada por Rosa noutro prefácio de Tutaméia, “Nós, os Temulentos”:
 
E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: – Faz favor, onde é que é o outro lado?  – Lá... – apontou o sujeito. – Ora! Lá eu perguntei, e me disseram que era cá...
 
Se o rio divide a terra em duas margens, a terceira margem fica acima da Terra, fica no espaço. É uma dimensão a mais que o homem conquista, quando entra nesse veículozinho apertado, individual, e se deixa disparar rumo ao desconhecido.



("The Time Machine", de George Pal, 1960)
 
E pelas avenidas e becos fractais da ficção científica chegamos ao Viajante do Tempo de H. G. Wells e The Time Machine (1895), em cujo clássico capítulo de abertura ele lembra a existência de três dimensões e propõe-se a viajar numa quarta. Também uma jornada numa máquina individual, minúscula, onde o viajante se impulsiona rumo ao desconhecido, numa viagem talvez sem volta.

 
No índice sugerido ao ilustrador Luís Jardim para a edição original de Primeiras Estórias, aparece um homem numa canoa, uma flecha (=indicação do voo espacial), o símbolo do infinito (frequente nas ilustrações de Rosa) e o símbolo da balança, signo astrológico. Este símbolo, porém, consta de duas linhas horizontais superpostas sendo que a de cima se arredonda para o alto.
 
É como se tivéssemos a indicação de um mundo onde tudo é bidimensional, tudo é horizontal, tudo é plano como na “Planolândia”, a Flatland do clássico ensaio de Edwin Abbott, de 1884, sobre as dimensões do espaço – e esse arredondamento para o alto sugerisse a existência de uma terceira dimensão, uma terceira margem do rio.



 
 
 
 
 
 




4 comentários:

  1. Bah, seja numa canoa, numa nave, ou nesse texto,
    fica-se flutuando entre a 3a margem e a 4a dimensão.
    Maravilhoso, seu Braulio!

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  2. Muito bom, Braulio, nunca havia pensado nessa visão FC do conto!

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  3. O voluntário e inexplicável afastamento social do personagem, nesse conto do Rosa, me lembrava o Wakefield, do Nathaniel Hawthorne. Não o havia lido nessa perspectiva de Sci Fi. Ótimo texto, Braulio!

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