sexta-feira, 16 de outubro de 2020

4631) O soldado e o fanático religioso (16.10.2020)




Lendo sobre o arraial de Canudos e a guerra civil descrita em Os Sertões, acabei intercalando essa leitura, sem querer, com a das memórias de Conan Doyle, Memories and Adventures (1924).
 
O criador de Sherlock Holmes é talvez minha primeira grande descoberta literária. Nos anos 1950, a Editora Melhoramentos lançou uma coleção de suas obras em 26 volumes. Graças à boa vontade de minha Tia Adiza, que assinou a coleção (recebia 2 volumes por mês), li toda, e tenho ainda hoje todos os livros. Pelo menos um deles, Contos do Ringue e de Guerra, é o mesmo exemplar que li quando menino.
 
Conan Doyle teve uma vida movimentada. Como todo inglês, procura rastrear origens nobres de sua linhagem, e afirma descender da casa dos Plantagenetas. Curiosamente, era de família irlandesa mas seu pai, por questões de emprego, mudou-se ainda jovem para a Escócia, e o menino Arthur nasceu ali, em Edinburgh. (Jorge Luís Borges, num soneto, o chama de “irlandês”, e vejo agora que não estava tão equivocado assim.)
 
Gostava do mar e sua primeira grande aventura foram meses num navio baleeiro, com vinte e poucos anos. Depois de se formar, foi médico de bordo de outros navios. Era grande observador de ambientes e de tipos humanos, uma característica da literatura de seu idioma e de sua época. Seu primeiro livro foi o hoje famoso Um Estudo em Vermelho (1887), a primeira aventura de Sherlock Holmes, que nessa primeira edição passou despercebido. Em seguida, ele produziu uma obra um pouco mais ambiciosa: um livro sobre guerra civil e fanatismo religioso.
 
Micah Clarke (1888) foi publicado no Brasil como A Narrativa de Miquéias Clarke, numa saborosa tradução de Agenor Soares de Moura. Conta a revolta protestante de 1685 liderada pelo Duque de Monmouth contra o rei James, católico, que não era simpático a uma parte considerável da população. Monmouth, que vivia na Holanda, desembarcou na Inglaterra proclamando-se rei, passou alguns meses arregimentando um exército composto em sua maioria por fanáticos mal-treinados mas decididos (um pouco como os jagunços de Canudos), e acabou derrotado na Batalha de Sedgemoor pelas forças mais bem equipadas, e mais experientes, do exército Real.
 
O livro de Doyle conta essa aventura, por meio do jovem Miquéias Clarke. O pai dele é protestante, e ajuda o rapaz a se engajar na batalha através do veterano Decimus Saxon, um mercenário a serviço de Monmouth. Miquéias é aquele rapagão de vinte anos e com dois metros de altura, cheio de vigor físico e boas intenções. Saxon é um dos grandes personagens da obra de Doyle: grisalho, calejado, malicioso, estrategista, com um olho infalível para entender situações bélicas e para detectar as espertezas alheias.



(Conan Doyle)

Falando desse romance, escrito aos 28 anos de idade, Conan Doyle recorda:
 
Esperando ainda a publicação do meu primeiro livro, e sentindo-me invadido por idéias de grande porte, decidi testar minhas forças e escolhi um romance histórico para este fim, porque me parecia a melhor maneira de combinar uma certa dignidade literária com aquelas cenas de ação e aventura que brotavam naturalmente de minha mente ardente e jovem. Sempre experimentei simpatia pelos Puritanos, que, apesar de suas peculiaridades, representaram a liberdade política e a sinceridade religiosa. Geralmente têm sido objeto de caricaturas, na ficção e na arte. Mesmo [Walter] Scott não os retratou como eram. Macaulay, sempre uma das minhas inspirações, foi o único que os tornou compreensíveis: aqueles lutadores soturnos, com suas Bíblias e seus espadagões. Há uma passagem sua (não posso citá-la literalmente) em que ele afirma que após a Restauração se alguém visse um peão mais inteligente que os demais, ou um camponês que lavrasse melhor a terra, podia ter a certeza de tratar-se de um ex-guerreiro de Cromwell. Esta foi minha inspiração para Micah Clarke, onde me deixei galopar à solta pela estrada larga da aventura. Eu estava impregnado de História, mas mesmo assim passei alguns meses pesquisando detalhes, e depois escrevi o livro com certa rapidez. Há passagens nele, como a descrição dos lares dos Puritanos, ou o retrato do Juiz Jeffreys, que não creio haver superado.
(p. 76, trad. BT)
 
Doyle é um excelente narrador de cenas de ação, de perseguição, de batalha. Isto transparece nos romances históricos ainda mais do que nas aventuras de Sherlock Holmes. São romances que trazem pesquisa livresca (Miquéias Clarke tem doze apêndices com informações históricas e transcrições de documentos) mas têm aventuras, suspense, reviravoltas, tensão.


Quando Monmouth reúne suas precárias tropas na cidade de Taunton, começamos a sentir o “tom” dessa insurreição desunida nas palavras do personagem (real) do pastor John Ferguson, exortando o “rei Monmouth” à batalha:
 
– Vou tornar bem claro o meu pensamento, Majestade. Não chegou ao nosso conhecimento que Argyle está perdido? E por que é que ele se perdeu? Porque não teve fé firme nas obras do Onipotente e teve forçosamente de rejeitar o auxílio dos filhos da luz trocando-o pelo da raça miserável dos fautores do prelatismo, que são meio pagãos, meio papistas. Se ele tivesse andado no caminho do Senhor, não estaria agora na prisão de Edimburgo com a corda ou a machadinha diante dos olhos. Por que não cingiu ele os rins e não marchou diretamente para a frente com a bandeira da luz, em vez de deter-se aqui e parar como um Dídimo poltrão? O mesmo ou pior nos sucederá se não marcharmos pelo país dentro e não fincarmos os nossos estandartes diante da perversa cidade de Londres – a cidade onde tem de ser feita a obra do Senhor, e o joio tem de ser separado do trigo e amontoado para arder no fogo.
(pág. 258-259, trad. A. S. M.)


Treinamento militar e armamento capaz, para soldados assim, não substituem a fé a o apoio divino. É um insurreição armada na base do “Deus proverá!”. Narra Miquéias:
 
Na cidade inteira ressoavam pregações. Cada tropa ou companhia tinha o seu orador escolhido, e às vezes mais de um, que discursava e expunha. De barris, carroças, janelas, e até mesmo do alto das casas, eles falavam às multidões embaixo; e nem se diga que sua eloquência não produzia efeito. Ouviam-se pelas ruas gritos roucos e ferozes, de mistura com orações entrecortadas e jaculatórias. Os homens andavam ébrios de religião como se fosse de vinho. Tinham o rosto afogueado, a voz pastosa, os gestos desordenados. Sir Stephen e Saxon sorriam um para o outro ao observarem aquela gente, pois sabiam, como soldados veteranos, que de todas as coisas que tornam um homem valente nos seus atos e indiferente à vida, o ímpeto religioso é o mais forte e o mais duradouro.
(pág. 412, trad. A. S. M.)
 
Admiramos os fanáticos de Canudos (e admirei, ao reler estas 500 páginas, os fanáticos ingleses) não por serem fanáticos, mas por serem o lado mais fraco e mais sincero. O único armamento que têm para defender seu fanatismo são chuços, foices e trabucos. Estão enfrentando lutadores muito mais preparados do que eles: mesmo o Exército patético e semi-maltrapilho que devastou Canudos tinha por trás de si forças e logísticas muito superiores às dos jagunços.
 
Fiquei pensando em escrever um romance sobre um confronto armado onde algum Poder conseguisse reunir – por meio de uma tecnologia de comunicação instantânea com milhões de pessoas pavlovianamente pré-condicionadas – o fanatismo religioso dos que acreditam estar conquistando uma vida-eterna melhor que esta, o treinamento e equipamento militar dos tempos modernos, e a impiedade fria de quem se julga moralmente superior ao inimigo.


 
("The Morning of Sedgemoor", de Edgar Bundy)
 
 







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