Uma vez, depois de uma mesa-redonda sobre temas ligados a religião, fé, etc., alguém me perguntou: “Por que você não acredita na existência de Outro Mundo?”, e eu disse: “Eu não consigo acreditar nem sequer neste, quanto mais num que eu nunca vi!...”
Um cético nem sempre é um cara aferrado à realidade. Às
vezes é um cara que precisa de comprovações muito rigorosas. E se ele sente que
o mundo de cá está em falta, o que dizer de um mundo com o qual ele nunca teve
nenhum contato?
Não que eu seja tão cético assim, e na verdade tenho uma
certa medula sertaneja que me leva a ser prático, aceitar as coisas como elas
parecem ser, e botar açúcar no café, mesmo admitindo a possibilidade de que
ambos não passem de ilusões berkeleyanas do meu espírito.
A respeito disso, tem uma história muito divertida a
respeito dos filósofos Bertrand Russell e Rudolf Carnap. Os dois estavam num congresso
filosófico discutindo sobre o “phaneron”, um conceito grego que designa o
conjunto de nossas percepções sobre o mundo. Quando existe uma certa
regularidade nessas percepções, construímos uma “ficção lógica” para afirmar
que qualquer coisa existe: uma pedra, uma cadeira, uma casa, uma pessoa...
Porque não sabemos
o que é o mundo – sabemos apenas o que percebemos dele, mas pode haver
infinitas coisas que não percebemos. O exemplo na linguagem comum é o vento,
que a gente não vê, mas deduz sua existência pelas coisas que ele move. (A
resposta mais simples a essa questão é que a existência do vento não é
percebida pela visão, mas o é pelo tato, assim como há coisa que o tato não
percebe mas a visão sim, como as estrelas do céu.)
Há também o mundo microscópico, que era inacessível a
nossa percepção, mas começou a fazer parte do nosso phaneron com o advento do microscópio, etc.
(Bertrand Russell e Rudolf Carnap)
Pois bem: certa vez os filósofos Bertrand Russell e
Rudolf Carnap estavam debatendo esta questão, perante um auditório na Universidade
de Chicago, e a certa altura Russell perguntou:
-- Professor Carnap: nossas esposas vieram conosco, e estão presentes
aqui no auditório. Será que elas existem, de fato, ou devem ser consideradas
meras ficções lógicas baseadas em regularidades existentes no phaneron de nós
dois, seus maridos?
Foi uma pequena molecagem da parte de Russell, que tinha
aquele humor britânico fundado em muita gentileza e cara-de-pau. É um argumento
aparentemente irrespondível, e que me lembra uma boutade semelhante de Ariano Suassuna, que dizia:
-- Eu não gosto de Kant [o filósofo] e um dos motivos é esse. Ele dizia
que nós não podemos afirmar a realidade exterior, que aquele jasmineiro é uma
coisa para mim, outra para você, outra para ele. Mais do que isso, ele
acreditava que eu nem sequer posso provar que a imagem que eu tenho corresponde
ao real. (...) É muito fácil você
discutir se aquele jasmineiro, se a imagem daquele jasmineiro corresponde ou
não ao real. O jasmineiro está quieto, no canto dele. Mas eu garanto que, se
fosse uma onça que entrasse aqui, nem Kant iria perguntar se por acaso se
tratava de uma correspondência com o real.
(Cadernos de Literatura, Instituto Moreira Salles, pag. 30)
O pragmatismo oncístico de Ariano ecoa o pragmatismo conjugal
de Bertrand Russell. Tem certos aspectos da realidade que, por mais que a gente
procure questionar filosoficamente, eles sempre dão um jeito de prevalecer e dizer,
“pára com essa besteira, é claro que eu estou aqui.”
O mesmo problema – penso eu – pode lançar luz sobre o
famoso Paradoxo de Aquiles e a Tartaruga, que já fez correr muita tinta de
penas ilustres como a de Jorge Luís Borges e a de Douglas Hofstadter (Godel, Escher and Bach). É aquela antiga
pegadinha onde o filósofo tenta nos convencer de que numa corrida entre “o
velocípede Aquiles” (como se diz em algumas traduções de Ilíada) e uma tartaruga aquele jamais conseguiria ultrapassá-la. É
claro que consegue. Mas é mais difícil provar isso teoricamente do que na
prática.
O que todos esses problemas envolvem é um detalhe que foi
levantado com justiça pelo professor Carnap, naquele debate com Russell. Queixou-se
ele de que Russell estava tentando ser engraçadinho às suas custas, pois na
verdade não se estava ali duvidando da existência das esposas de ninguém. O que
eles dois (e todos os filósofos) procuram é algum tipo de certeza filosófica,
uma prova argumental de que isto em que acreditam é verdadeiro. Querem uma
prova filosófica irrefutável de que o
mundo é real; e essa prova não existe.
(Bruno Latour)
Um artigo de Ava Kofman no New York Times conta os percalços filosóficos de Bruno Latour, um
filósofo da Ciência que vem passeando há muitos anos nesses labirintos. Ela
abre o artigo narrando como Latour estava no Brasil em 1996, participando de um
simpósio, e um ansioso psicólogo conseguiu levá-lo para um lugar discreto e
desfechar-lhe a pergunta: “Professor, o senhor acredita na realidade?...”
Parece piada de leitor de Philip K. Dick depois de
algumas cervejas. Mas isso é o café-com-pão desses filósofos, que se veem
forçados a esmiuçar as menores coisas na tentativa de provar o que parece óbvio
a todo mundo.
O trabalho de Latour envolve uma longa tentativa de
provar que os fatos científicos não existem por si sós: eles são o produto de
uma rede (networtk) de instituições e
práticas e grupos e debates e consensos, que os tornam inteligíveis e aceitos.
Se essa rede de apoios sócio-culturais se romper ou se esvair, fica fácil
provar qualquer coisa. Até que a Terra é plana.
A consciência científica é uma consciência social,
comunitária. Ela pode ser sacudida de vez em quando pelos terremotos de um novo
“conceptual breakthrough”, uma
ruptura de conceitos para abarcar uma visão mais ampla – como o que Einstein
fez com a Física, ampliando (e negando em alguns aspectos cruciais) o
universo de Isaac Newton.
Ela pode também ser sacudida por terremotos de
obscurantismo, como parece estar sucedendo agora, com a ascensão de grupos
semi-letrados manipulados por gente interessada na devastação do meio ambiente,
por exemplo. Ou na (impossível) eternização do modelo energético baseado no
petróleo e nos motores a explosão.
Esses grupos se aproveitam de um certo
torre-de-marfinismo da própria comunidade científica e começa a questionar
coisas absurdamente óbvias – se a Terra gira em torno do Sol, ou se de fato
existem micróbios. E se propõem, principalmente para milhões de jovens
inconformados com isto ou aquilo, como “questionadores do status quo científico”, como rebeldes perseguidos pelo mundo
acadêmico.
Filósofos e cientistas são capazes de questionar a
existência de uma esposa ou de uma onça, pelo mero esforço intelectual de
explorar uma pergunta até o fim (coisa que os semi-letrados detestam fazer). E é
irônico que agora sejam forçados a ignorar perguntas como “O senhor acredita na
realidade?”, que em sua aparente ingenuidade é uma pergunta crucial, para
explicar o que nunca lhes passou pela cabeça ter que explicar – que é preciso
tomar vacinas contra o sarampo, ou que não existem alienígenas reptilianos
disfarçados de políticos ou banqueiros. (Se bem que esta última imagem seja a
metáfora mais adequada que nosso inconsciente coletivo já produziu sobre estas
duas categorias profissionais.)
Sutil e elegante o seu texto.
ResponderExcluirÓtimo site. Textos fascinantes sobre assuntos interessantes.
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