terça-feira, 17 de setembro de 2019

4504) A palavra Exu (17.9.2019)




Proposta Inicial: “Toda palavra é uma mensagem que pode ser decifrada, mesmo não tendo sido cifrada antes por ninguém.”

"Decifrar" pode ser também inventar uma intencionalidade a-posteriori. Não é a “descoberta”, e sim a invenção de significados. Decifrar não é apenas encontrar o que estava escondido, é criar o que não existia antes.

Uma caixa vazia e fechada, que a gente abre e no momento em que ela é aberta se enche de coisas.

Há muitos anos, na Bahia, tomei uma noitada de cerveja com o cineasta Miguel Borges, que divertiu todo mundo na mesa com interpretações onomástico-numerológicas do nome de cada um. Ele pegava cada nome, explicava (inventava) um significado, uma mensagem. A pessoa morria de rir vendo o truque, mas concordava que tinha tudo a ver com ela.

Sim, era o mesmo Miguel Borges que dirigiu As Escandalosas e O Enterro da Cafetina – ele também foi editor da “revista mística” Ano Zero e tinha uma certa propensão ao Realismo Fantástico.

(Infelizmente, as testemunhas da veracidade do que estou dizendo, Guido Araújo, Pedro Camargo, estão a esta altura debruçados numa varanda lááá de cima, me cochichando: “Não se preocupe, vai em frente, faz de conta que está inventando mesmo.”)

A palavra “exu”, por exemplo, que neste amanhecer sonolento se depara comigo numa página (a página de abertura) do livro novo de Luiz Antonio Simas, O Corpo Encantado das Ruas. Essa palavra contém o quê?

Ela contém um E, um X e um U.

É a palavra “EU”, só que no centro dela, cravado nela, dividindo-a, está um X, uma incógnita, o símbolo do desconhecido (uma quantidade que não sabemos qual seja) e do arbitrário (uma quantidade que nos permite decidir: “é tanto”).

No centro do Eu, dois machados cruzados, duas lanças, duas espadas, simbolizando o conflito, mas não apenas o conflito negativo (a guerra, a destruição), mas o conflito gerador, o cruzamento entre o macho e a fêmea gerando vida, o cruzamento entre duas lascas de pedra gerando fogo.

Esse X é uma encruzilhada no centro do Eu, assim como existe um grão de areia no centro da ostra. É em redor desse conflito incômodo que camadas sucessivas de luz começam a se sobrepor e a se irradiar.

O Exu (diz Simas) é “o mensageiro entre o visível e o invisível”. É o equivalente ao Hermes grego e o Mercúrio romano. (Essa analogia é por minha conta e risco.) Não é uma pessoa, é um portal que pensa, um portal ambulante com intencionalidade e algo de emoções humanas. Uma passagem e ao mesmo tempo um passageiro.

Como todo mundo sabe, o símbolo da cruz é visto por alguns como o instrumento de suplício em que Jesus Cristo foi sacrificado. E é visto por outros como a Cruz de Descartes, o eixo das abscissas e ordenadas, do X e do Y, do visível e do invisível.

O X e a cruz são o mesmo símbolo, em diferentes momentos de sua rotação. São o contato com o Incógnito, o Desconhecido, o Mistério Inefável.

Exu não é o diabo cristão, como muita gente insiste em vê-lo. O Diabo cristão é por um lado uma personificação (uma antropomorfização) do Mal, um Mal que de fato existe no mundo físico-espiritual. Mas no varejo ele acaba sendo o personagem preferido das correntes puritanas e repressoras, como um elemento contaminador que serve para envenenar tudo que torna a vida mais intensa e por isso causa medo. O sexo é coisa do Diabo, o riso é coisa do Diabo, a festa é coisa do Diabo, o prazer é coisa do Diabo, a comida saborosa é coisa do Diabo, a bebida é coisa do Diabo...

Essas coisas não são do Diabo, não são do Mal: são do Exu, são dessa contradição cravada em nós – a contradição entre o físico e o espiritual, duas forças que nos puxam em direções opostas e nos dilaceram, mas nesse puxar e dilacerar geram a energia que nos move.

Não podemos existir só no físico – nem só no espiritual. Temos que existir neste ponto onde os dois se encruzam, neste X. Neste cabo-de-guerra onde essas duas energias se enfrentam, como numa queda-de-braço onde centímetros de vantagem se alternam mas um é sempre incapaz de derrubar de vez o outro.

Na adolescência eu olhava fascinado um livro que me foi muito importante, e que não reli desde então: Sexus de Henry Miller. E eu via o Exu dentro desse título. O sexo (cujo mundo eu estava adentrando pé ante pé, virginiano que sou) tinha cravado dentro de si esse diabrete irrequieto com o pau duro de fora, e quando eu prestava atenção via que o diabrete era eu.

Era o trupizupezinho que reencontrei anos depois numa xilogravura e usei como carimbo dos meus folhetos e livros de poemas. Um diabinho do bem, de asas, mas olhando de soslaio as coxas das moças. Um diabinho que dança. “Só posso acreditar num diabo que seja capaz de dançar”.


SEXUS é uma palavra que tem EXU no centro e dois S nas extremidades. Por que um S? O que diz essa letra? Quem dá a resposta é a sextilha famosa de Pinto do Monteiro:

Eu só comparo esta vida
à curva da letra S:
tem uma ponta que sobe
tem outra ponta que desce
e a volta que dá no meio
nem todo mundo conhece.

A Vida nas duas extremidades. O Eu dentro dela. E no centro do Eu esse X mercurial, instável, desequilibrante, arlequinal, ora rude ora terno, ora violento ora apaixonado, com duas correntes de energia que se cruzam e se reforçam uma à outra.

Não estou “viajando”, aliás são 10:55 da manhã e tudo que tomei foi meia garrafa de café, com um sanduíche de queijo. “Sexus” era uma palavra onde se cifrava esse sentido da vida como algo que tem no seu centro uma encruzilhada, o lugar das oferendas (a oferenda é o nosso corpo, que deixamos aqui para que o espírito possa subir – segundo a crença de muitos).

A prova de que não estou delirando é que o próprio Henry Miller sub-titulou aquela sua trilogia como “A Crucificação Encarnada”, “The Rosy Crucifixion”. Uma dessas expressões onde a forma traduzida é superior à original, porque “encarnado” não significa apenas “cor de rosa, avermelhado”, mas “transformado em carne”.


Assim diz, na página de abertura do seu livro, compartilhada em foto nas redes sociais, o autor Luiz Antonio Simas:

A ruas são de Exu em dias de festa e de feira, dos malandros e pombagiras quando os homens e mulheres vadeiam e dos Ibêjis quando as crianças brincam.

Tudo começa com o ipadê, o padê de Exu, a cerimônia propiciatória com farofa de dendê, cachaça (oti) e cantos rituais, para que Exu traga bom axé para as festas nos terreiros, cumpra seu papel de mensageiro entre o visível e o invisível, chame os orixás e não desarticule, com suas estripulias fundadoras da vida, os ritos da roda, aqueles em que os deuses dançam pelo corpo das iaôs (as filhas de santo). O padê de Exu também pode ser colocado na encruzilhada, lugar em que as ruas se encontram e os corpos da cidade circulam.

A encruzilhada é a crossroads onde se diz que os cantores de blues como Robert Johnson “fizeram um pacto com o Mal para aprender a tocar”. O que é uma falácia, uma calúnia. Nas encruzilhadas o único pacto possível é com o fluxo, o trânsito, a passagem, a travessia. A encruzilhada representa (entre outras coisas) o lugar onde o Bem e o Mal se cruzam, se tocam, se contaminam: a Vida.

E quem tem jurisdição sobre a encruzilhada é esse trickster, esse diabrete, esse anjinho da cara suja, esse palhacinho exuberante, exultante, exumado do fundo da terra e que ao ser trazido de volta à luz está eternamente vivo, transgressor, desarrumando o arrumado, viramundo virado, fechando um caminho aqui, abrindo outro acolá, ponto de energia ora em corrente alternada, ora em corrente contínua, cravado no centro do Eu do mundo.











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