Eu estava de passagem por uma cidade paraibana, que chamarei, ao estilo Monteiro Lobato, de Três Estrelinhas. Ia a trabalho e fiquei num hotelzinho acolhedor. Na primeira tarde percebi que tinha deixado no Rio meu caderno de anotações.
Eu dou preferência a caderno tamanho livro, capa dura, pode
ser espiral ou encadernado, mas prefiro com pauta estreita, porque minha letra
é miúda. Saí do hotel em busca de uma papelaria, num sol de duas-da-tarde capaz
de torrar um pão-com-manteiga no peitoril da janela.
Achei a papelaria e entrei. A súbita transição daquele
forno abrasador para a sombra fresca cheirando a papel foi como o acesso a uma
zona crepuscular fora do tempo e do espaço. A loja era do tipo estreita e
comprida, tendo de um lado prateleiras do chão ao teto, e do outro um balcão longo com tampo de
vidro.
Ninguém no Caixa, que ficava logo à entrada; lá no fundo,
apenas duas atendentes arrumando coisas. Fui para lá, refrescado, leve, sem
pressa nenhuma.
As duas estavam conversando, conversando permaneceram,
como se eu fosse transparente. Parei junto da prateleira, peguei numa coisa e noutra,
porque gosto de fazer o senhor educado e esperar que alguém se dirija a mim
primeiro.
Ilusão trêda, diria Augusto dos Anjos, porque a conversa
ali estava com mais de mil na buraqueira. A morena estava de pé junto à parede:
rabo de cavalo, bonitinha, vinte e poucos anos, uns olhos líquidos cheios de
paciência atávica. Recebia e colocava na prateleira mercadorias que a loura,
agachada, retirava de uma caixa onde caberia a papelaria inteira.
– Eu tou com um ódio tão grande, tão grande – estava
dizendo a loura, que era bronzeada, saradona, teria seus trinta-e-bote-força,
rosto sardento, queixo resoluto – que a vontade que eu tenho é de dar um tiro
naquele corno.
- Vige, mulher – disse a morena, recebendo uma pilha de
caixas de lápis de cor e arrumando na prateleira, bem metodicazinha. – Teu
marido, e tu chama de corno.
– Deus é testemunha que eu nunca botei chifre nele, mas
com a raiva que eu tou vou acabar botando com o primeiro que aparecer.
Fiquei por ali, como quem não quer nada. Ela prosseguiu:
– Um safado daquele, um nojento. Eu não sei como é que eu
não fiz uma besteira.
– Pois é, mulher. Na tua casa?! O homem ter a coragem de
trazer uma mulher pra dentro da tua casa, botar em cima da tua cama? Eu fico
passada com Válter, nunca pensei.
- Pois eu vou dizer uma coisa – disse ela, estendendo uns
pacotes de papel A-4, um por um. – Nunca chegue em casa fora de hora, minha
filha. Principalmente se você for casada com um folgado, que só trabalha quando
quer. Chega me dá um abuso quando eu tou trocando de roupa pra vir trabalhar e
ele fica deitado, abrindo a boca, com sono, dizendo que vai ter que levar a
picape na oficina, mas só mais tarde, e vai dar mais um cochilo porque está
cansado. Só vive cansado, nem sei do quê.
A outra riu, arrumando os pacotes.
– Eu sei do quê... Quando você tá de lua boa, só chega
aqui contando vantagem e dizendo que o serviço é bom.
A outra limpou as mãos nos jeans, pegou umas caixas de
alguma coisa e ficou checando uma nota fiscal cheia de vias.
- O serviço dele tá com os dias contados – disse por fim,
dobrando a papelada e recomeçando. – Remédio pra dormir, e uma serra-de-pão.
A morena riu, curvando o corpo.
- Pára com isso, Dete, tu sabe que não é capaz.
- De capar um safado daquele? Sou capaz sim. – Deu de
ombros. – Depois costura de novo no lugar e ele fica com a lição.
A conversa estava ficando punk demais e eu resolvi
intervir.
- Hrrrm-hrrrmm – pigarreei.
A morena me olhou de frente. Dete girou o corpo e me
checou de cima a baixo. Nunca me senti tão nu.
- Boa tarde – disse eu. – Não quero interromper.
- O senhor tá procurando alguma coisa? – disse a
moreninha.
- Caderno pautado, capa dura, assim desse tamanho –
respondi, fazendo com as mãos um gesto que no mesmo instante me pareceu
totalmente inapropriado, descabido.
A loura me desfechou um olhar que equivalia ao
raio-cristalizador daquelas séries de ficção, capaz de transformar em gelo uma
fogueira de mil graus.
A morena me salvou.
– Tem não.
– ‘Brigado – disse eu, e bati miseravelmente em retirada,
rumo ao bendito calor que reinava do lado de fora da caverna ártica, siberiana,
silenciosa, que deixei às pressas para trás, quando emergi na canícula com suor
na testa e uma crônica engatilhada.
Muito bom!
ResponderExcluirMaravilha.
ResponderExcluirMas eu bem que fiquei curioso com essa galega balzaquiana querendo chifrar o marido com o "primeiro" que visse.
Sensacional!! É mote para uma dessas histórias cômicas bem brasileiras, não acha?
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