Os estudiosos da obra de Gabriel Garcia Márquez citam o parágrafo de abertura de Cem Anos de Solidão (1967) como um dos mais brilhantes da literatura. É o famoso trecho onde ele se refere ao gelo e ao pelotão de fuzilamento.
Numa
entrevista a Armando Durán, em Caracas (1968), o escritor comentou um aspecto
importante de sua técnica de escrita.
O problema
mais árduo é escrever o primeiro parágrafo. Pode levar muitos meses, e
inclusive muitos anos, até que eu tenha a noção exata de como deve ser. Só
quando está escrito o primeiro parágrafo se pode decidir, de forma definitiva,
se a história tem futuro, e só então sabemos qual será seu estilo e sua
extensão, e quanto tempo será necessário para escrevê-la.
Parece
um exagero, mas isto tem muito a ver com a curiosa personalidade desse autor,
uma mistura interessante de objetividade e fantasia.
Li
há pouco sua novela Del Amor y Otros
Demonios (1994), um relato de paixão sexual e possessão diabólica que
poderia ser comparado, por um resenhista menos respeitoso, a um cruzamento
entre Lolita e O Exorcista.
É
a história de Sierva Maria de Todos los Ángeles, uma menina de doze anos, com
uma cabeleira que lhe desce abaixo da cintura, e da paixão catastrófica que ela
desperta no padre Cayetano Alcino del Espíritu Santo Delaura y Escudero,
encarregado de seu exorcismo.
A
menina não está propriamente possuída pela demônio. Seu pai, um nobre de
Cartagena das Índias, tem motivos para supor que ela contraiu hidrofobia, mas
os acessos a que ela é sujeita levam o bispo local a providenciar para que ela
seja exorcizada, pois a mera raiva não seria capaz de produzir os fenômenos
ofensivos que a acometem.
Eis
o primeiro parágrafo do livro (tradução de Moacir Werneck de Castro):
Um cachorro
cinzento com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro
domingo de dezembro, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas de índios
e toldos de loterias, e de passagem mordeu quatro pessoas que se atravessaram
no seu caminho. Três eram escravos negros. A outra foi Sierva Maria de Todos
los Ángeles, filha única do marquês de Casalduero, que fora com uma empregada
mulata comprar uma fieira de guizos para a festa de seus doze anos.
Garcia
Márquez era um cinéfilo, fez crítica de cinema, deu cursos de roteiro, foi um
dos criadores de uma famosa escola de cinema em Havana. O livro Como Contar um Conto transcreve suas
conversas com seus alunos dos cursos de roteiro, e mostra o modo descontraído,
tentativo, sempre aberto e sempre crítico, com que ele procura abordar as
possibilidades de uma história a ser contada.
Esse
primeiro parágrafo é muito cinematográfico ao descrever uma ação veloz e
contínua, a disparada do cachorro através do mercado, como se a câmera o estivesse seguindo de perto. E ao mesmo tempo ele vai temperando a ação física
imediata com aquelas informações gerais que só um ponto de vista distanciado, como
o da literatura, pode fornecer: “filha única do marquês”, “para a festa de seus
doze anos” – informações que daria muito trabalho “mostrar” e é mais simples
“dizer”.
A
história se passa em Cartagena das Índias, a cidade-porto onde Márquez viveu em
diferentes períodos de sua vida, e já neste trecho inicial temos a convivência
misturada entre marqueses e escravos, um dos eixos da narrativa.
E
o cachorro-doido nos conduz, nesse trecho, à protagonista da história, essa
menina de doze anos que se torna o epicentro de um torvelinho social, sexual e
religioso.
Sierva
Maria de Todos los Ángeles é filha de um nobre arruinado e depressivo, e de sua
esposa espertalhona, uma matrona ninfomaníaca viciada em “mel fermentado e
barras de cacau”. Os pais não gostam da menina. Esta é “adotada” pelos
escravos, dorme na senzala com eles, canta suas cantigas, fala sua língua. E
tem um temperamento indomável.
A
mordida do cachorro produz suspeitas de hidrofobia que se estendem por toda a
primeira metade do livro e levam o pai arrependido a pedir o socorro de um
médico agnóstico e do bispo local. A menina é refratária a qualquer tratamento,
e quando está ensandecida dana-se a praguejar em iorubá. O bispo diz que é caso
de exorcismo, e a garota se transforma numa Linda Blair que precisa ser
amarrada à cama.
Até
que entra a segunda peça mais importante do jogo, o padre Cayetano Escudero
que, encarregado de exorcizar a possessa, acaba deixando-se possuir
(espiritualmente, pelo menos) por ela. E aí fecha-se um nó esboçado nas
primeiras linhas do livro, porque, tal como o cachorro-doido, o padre Cayetano
tem cabelos negros e com uma mecha branca por cima da testa. É ele, na verdade,
e não o cachorro, o desencadeador da desgraça final.
O
ambiente colombiano descrito por Garcia Márquez lembra muito o universo “casa
grande e senzala” de Gilberto Freyre, com aqueles nobres cultos que falam latim
e nunca trabalharam, vencidos pela indolência, amorrinhando-se na rede o dia todo à sombra das mangueiras, cedendo à promiscuidade com os
escravos, vivendo em mansões semi-desmoronadas por onde passeiam galinhas e
bodes.
Europa
e África são os dois polos culturais da história, e Sierva Maria acaba se
tornando um corpo europeu de menina branca, com quilométrica cabeleira ruiva,
possuído por superstições africanas, folguedos africanos, um certo desprezo
pela dor física e uma certa indiferença ao sofrimento moral.
Esse
magnetismo africano é sugerido no terceiro parágrafo, quando se fala que
naquele mesmo dia estava sendo posta à venda no mercado
...uma única
abissínia, de sete palmos de altura, untada com melaço em vez do óleo comercial
de rigor, e de uma beleza tão perturbadora que parecia mentira. Tinha o nariz
afilado, o crânio acabaçado, os olhos oblíquos, os dentes intactos e o porte
equívoco de um gladiador romano. Não a ferraram no barracão, nem anunciaram sua
idade e estado de saúde; puseram-na à venda por sua beleza apenas. O preço que
o governador pagou por ela, sem regatear, e à vista, foi seu peso em ouro.
Essa
escrava reaparece perto do fim do livro, quando o Vice-Rei passa pela cidade e
o governador lhe oferece um jantar. A escrava é trazida nua à sua presença, e o
Vice-Rei, perturbado, afasta os olhos e diz: “Tirem essa mulher daqui”.
"Essa
mulher" reflete, de algum modo, a potência do desejo sexual reprimido que leva à
desgraça a menina selvagem de doze anos e o padre exorcista que se apaixona
pelo demônio que o encarregaram de expulsar.
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