São vários os contos populares onde esta cena
aparece. Eu me refiro àquele confronto que geralmente se dá entre o herói, que
é um cara apenas esperto, e o poderoso Rei. O Rei faz uma série de perguntas, e
o esperto as rebate com um negaceio diferente de cada vez.
Aí, o Rei pergunta:
– Onde fica o meio do mundo?
E aí “Camões”, ou “Cancão de Fogo” ou qualquer outro
diz:
– Exatamente ali, perto daquela coluna do palácio.
– Como é que você sabe?
– Pode mandar medir.
O Rei não tem como mandar medir, e talvez nem soubesse
explicar o que era pra ser medido. Ele pergunta:
– Quantos cestos de terra tem naquela montanha? –
aponta a janela escancarada.
O esperto diz:
– Um milhão, duzentos mil, e vinte e seis.
Se o Rei fosse esperto, os dois se engatariam nesse
ponto, gerando um impasse absoluto, como um empate por exaustão no xadrez. Mas
o Rei é um mero personagem, e precisa fazer a terceira pergunta, a frase fatal
para que o vírus da História seja passado adiante:
– O que é que eu estou pensando?
E “Arlequim”, ou “Pedro Malazarte” responde:
– Está pensando que eu sou [a falsa identidade sob a
qual ele se apresentou ao rei], mas não sou, eu sou [Arlequim, Malazarte].
E o conto se desenlaça. O que há de interessante
nessas cenas é que pertencem ao conto de fadas, à literatura de cordel, ao
esquete de humor, à arte da pergunta acachapante e da resposta relâmpago. São
de circo, são de almanaque medieval, são das madrugadas radiofônicas. Um
antropólogo talvez dissesse que ela cumpre um pouco a função de cortar
nós-górdios filosóficos reduzindo tudo a uma cambalhota simples.
O interessante é que pode-se manter essa ceninha,
vamos chamá-la “O Interrogatório” ou “As Três Perguntas do Rei”, entre os
quadros de uma história, mas mudando-se, como convier, quais as perguntas
feitas, as respostas dadas. É um bloco que pode ser trocado por diálogos novos,
mas sempre mantendo essa função: o esperto “come o rei com farinha”.
Dando uma geral nas literaturas antigas do Ocidente
e do Oriente a gente vê o quanto é comum esse conceito da cena que pode ser infindavelmente
mudada e ainda assim continuar a mesma. Ela precisa cumprir sempre a mesma
função: fazer o esperto revelar sua identidade ao rei, após derrotá-lo. A
perguntas e as piadas podem ser mil vezes refeitas por quem encenar esse conto.
São centenas as aventuras de cordel em que um
coronel ou rei ou fazendeiro põe a filha no balcão matrimonial, com a condição
de que o pretendente responda três perguntas, ou formule três perguntas
próprias, ou pratique alguma façanha, para merecer a mão da noiva em disputa. É
a aliança estratégica entre o Poder (o rei) e o Saber (o esperto).
É claro que todas essas histórias são contos
inventados, e é muito fácil imaginar um improviso de fração de segundo quando
se está escrevendo e revisando em toda comodidade. Mas o “repente relâmpago”
também existe na vida real, aquela resposta ideal imaginada, formulada e dita
em voz alta ao longo de alguns segundos.
Diz-se que Bocage usava, em alguns círculos
poéticos, o pseudônimo anagramático de Elmano, a partir de seu nome verdadeiro,
Manoel Bocage.
Um dia vem ele por Lisboa quando cruza com outro
poeta, que, vendo-o cabisbaixo, pergunta em verso:
– Elmano, a lira divina / por que razão emudece?
Bocage, que estava meio sorumbático, ripostou:
– Porque mais cala no mundo / quem mais o mundo
conhece.
O amigo tornou, em cima da bucha:
– E o que tens visto no mundo / que tanto assombro
te faça?
E “Elmano Sadino” fechou a estrofe:
– Um poeta com ventura, / um toleirão com desgraça.
Bocage era da linhagem de poetas malditos, como
Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”. Na
vida de cada um deles vê-se a presença do improviso leve e solto, parte de uma
cultura, que pode chegar a encenar grandes disputas de arquibancada cheia; mas
no geral é para uso cotidiano, em mesa de bar.
Em língua portuguesa, o conto mais antigo que conheço com as três perguntas é uma história de Trancoso: conto XVIII da primeira parte dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo.
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