quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

4415) Eu me lembro XIII (20.12.2018)




1
Eu me lembro de quando se aproximava o mês de setembro e a gente interrompia as aulas para ir ensaiar o desfile, na rua. Por um lado era bom porque nesse dia não ia ter mais aula. Quando acabava o ensaio a gente voltava pro colégio, pegava as coisas e ia embora. Mas o ensaio em si implicava às vezes sair marchando por aquelas longas retas, sair do Alfredo Dantas, descer a Irineu Joffily, dar uma volta no Açude Velho, subir pela Vila Nova da Rainha, pegar a Maciel Pinheiro, voltar ao colégio. Mas havia o fascínio de ver a banda marcial de perto, observar como os caras dos taróis controlavam o rufo, entender a função do bombão, do surdo; e sair um pouco no sol, tirar as teias de aranha, de vez em quando trazer “os povo” pras janelas, pálidos de espanto. Me lembro que havia um conundrum filosófico irrespondível: É melhor ser rabeira do pelotão 1, ou testa do pelotão 2? O que hoje talvez se dissesse: É melhor ser o lanterna da Série A ou o campeão da série B?” 

2
Eu me lembro de um Museu de Cera que ficou algumas semanas em exposição em Campina, em frente à Praça da Bandeira (onde hoje tem o camelódromo). Havia estátuas de vultos históricos, cientistas, personagens da literatura, da lenda. Havia Caryl Chessman, o “bandido da luz vermelha”,  na câmara de gás; era um fato ainda recente. Havia Jack o Estripador, etc.  Na porta de entrada, um disco de propaganda, chamando os clientes para entrar, tocava em loop um tango de Carlos Gardel, que diz “teu riso é como a brisa...”  Havia uma outra seção, só para maiores de 18 anos, que exibia de maneira gráfica (modelos de cera) uma infinidade de doenças venéreas, mostrando sua aparência exterior, explicando o que era e acho que sugerindo remédios. Anos depois, um museu de cera diferente, mais didático, menos carnaval-ambulante, ficou em exposição na Faculdade de Administração, na Getúlio Vargas, logo acima da esquina do Correio. Havia um pistoleiro de barba chamado Cruz Diablo, me pareceu um bom nome de personagem.

3
Eu me lembro de que no bairro de José Pinheiro, o popular “Zepa”, havia (será que ainda há?) um cinema pequeno, chamado Cine Art. Era um desses cinemas-poeira de rua, e tinha na entrada uma placa: “Proibido Entrar Descalço”. No auge do Cineclube de Campina Grande, surgiu uma idéia de promover ali uma sessão de cinema de arte, como já havia no Capitólio e no Babilônia. O idealismo de Luís Custódio, presidente do Cineclube, o levou a mil negociações com a gerência do cinema, onde só passavam bangue-bangues e pornochanchadas. Depois de marchas e contramarchas, o Cineclube promoveu ali a exibição do filme O Picolino (“Top Hat”), um musical com Fred Astaire, que nossa ingenuidade acreditou ser um título alegre, descontraído, capaz de agradar a qualquer platéia. Não fui assistir a sessão, o que hoje lamento, porque foi a única.

4
Eu me lembro do sebo de Câmara, um sebo que ficava na rua Maciel Pinheiro, entre aquela galeriazinha onde funcionou a Varig e a descida para o Beco dos Bêbos. Você subia dois ou três degraus da calçada e entrava numa sala ampla, com livros ao longo das paredes, empilhados em balcões ou em esteiras rente à parede. Câmara era um sujeito alto, meio calvo, tinha um gosto muito bom para literatura e poesia. Foi lá que eu comprei meu primeiro livro de Drummond, a Antologia Poética da Sabiá. Foi lá que vi um livro maluco chamado Kaos e guardei na memória esse título. Anos depois reencontrei o título citado no Pasquim, ligado ao nome do músico de Maracatu Atômico e cineasta de O Demiurgo, Jorge Mautner. Campina Grande sempre foi mais uma cidade de livrarias do que de sebos. O atual Catalivros de Ronaldo já é um dos sebos mais duradouros da história da cidade.

5
Eu me lembro de um jogador amador de Campina, chamado Lambretinha, pela velocidade. Ele jogava no Fracalanza, que era o time de funcionários de uma rede comercial, enxertado com jogadores vindos de outros times. Lambretinha era pequenino, não lembro bem da cara dele, mas me lembro de saltar de pé no meio das cadeiras cativas do Presidente Vargas quando a defesa deles rebatia uma bola e alguém esticava o passe longo esperado por todos. O estádio ficava de pé, e ele dava arrancadas que revivi depois quando vi um gol de Jacozinho num jogo comemorativo no Maracanã. O Fracalanza era verde e amarelo, acho, e jogava na preliminar. (Naquele tempo antediluviano, jogo de futebol era um programa duplo: quem chegasse mais cedo via um jogo de dois times amadores, geralmente; e depois o programa principal da noite, o jogo do dono do estádio contra um visitante.) Era o famoso esfria-sol.

6
Eu me lembro de Lampião, apelido de Judite, uma das meninas-da-noite que batiam calçadas nas madrugadas de Campina, fazendo programas com qualquer cara que parasse um carro e botasse elas para dentro. Lampião era a mais velha e uma espécie de líder de um grupo que tinha Olindete, Menininha, Rute... As mais novas tinham uns quinze anos, mas eram todas escoladas, vividas, calejadas na conversa e no comportamento. Eu era da turma que fazia bacurau (conversas aleatórias noite adentro) em frente ao antigo Museu de Arte, na esquina da Maciel Pinheiro com a Floriano Peixoto. As meninas de vez em quando encostavam e a gente ficava tirando onda, puxando conversa com elas. Lampião era corajosa e agia como protetora das outras; me lembro de uma vez ela contando pra gente como uns PMs estavam querendo pegar na marra uma das garotas. Ela disse: “Os caba vieram tirando onda mas eu trevessei meu naife e falei: Quem vier eu furo! Oxente, foram simbora.” Judite faleceu algumas semanas atrás, com mais de 70 anos. Vi sua foto nas redes sociais: negra, envelhecida e valente.










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