Tem lugares que guardam um enorme valor simbólico para um leitor de romances policiais. Como por exemplo o endereço de 221b Baker Street, em Londres.
Dias atrás estive na cidade de Aparecida (PB), a convite
do Centro Cultural Banco do Nordeste (Sousa), participando da 8ª. Mostra Acauã
do Audiovisual Paraibano, um evento sertanejo que ocorre periodicamente na
Fazenda Acauã, um dos marcos históricos mais interessantes da Paraíba.
Por convite de Sergio Silveira (CC-BNB) e Laércio Filho
(Acauã Produções Culturais), não só fiz uma palestra como pude presenciar o
lançamento do novo romance de Ariano Suassuna, que foi apresentado por seu
filho, o artista plástico Dantas Suassuna.
O Romance de Dom
Pantero no Palco dos Pecadores é na verdade uma caixa com um conjunto de
dois livros, “O Jumento Sedutor” e “O Palhaço Tetrafônico”, que se juntam ao
clássico Romance da Pedra do Reino
para compor um conjunto romanesco, “A Ilumiara”.
Foi em função disto que fui até lá, para falar sobre “O
Mistério Policial no Romance da Pedra do Reino”.
Quem leu o livro de Ariano sabe que ele tem linguagem
fácil mas estrutura difícil – há uma quantidade absurda de informações a serem
assimiladas e conectadas entre si, para que se possa compreender com clareza a
aventura do narrador, Pedro Dinis Quaderna, que se anuncia como novo imperador
do Brasil.
(Irandhir Santos, como Quaderna)
Quaderna descende do fanático que em 1838 promoveu um
massacre na Pedra do Reino (hoje no município de São José do Belmonte, em
Pernambuco) para lavar com sangue os rochedos, desencantar um reino e trazer de
volta D. Sebastião, o rei desaparecido de Portugal.
Um dos mistérios do livro original (quem quiser detalhes
vá direto ao Capítulo/Folheto 51, “O Crime Indecifrável”) é o assassinato do
tio de Quaderna, Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, encontrado morto num
aposento trancado por dentro, em sua fazenda, a Onça Malhada.
Peço ao leitor recente que não se preocupe com spoilers,
que é um dos traumas permanentes dos leitores de livros policiais. Vou revelar
aqui a resposta, sim, mas isso é uma gota no oceano do romance, e ouso dizer
que o próprio Ariano daria de ombros diante de um excesso de preocupação do
leitor. O livro é sobre outra coisa.
Perguntei uma vez a Ariano Suassuna se ele era fã de Edgar
Wallace, e ele confirmou. Wallace, inglês, foi um dos autores policiais mais
famosos nas primeiras décadas do século 20. Traduzidíssimo no Brasil, era lido
por minha avó Clotilde, meus tios, meu pai. Existe até uma foto famosa de
Lampião lendo um livro dele.
Se Lampião gostava, por que não Suassuna? Ele confirmou
que o mistério policial da Pedra do Reino
foi inspirado em dois livros de Wallace que por coincidência eram dois dos meus
favoritos, publicados pela saudosa Coleção Amarela, da Editora Globo de Porto
Alegre: Na Pista do Alfinete Novo e A Pista da Vela Dobrada.
São aqueles enigmas tradicionais que a gente chama de
“quarto fechado” (“locked room”): o mistério consiste em saber como o assassino
se evadiu do local depois de cometer o crime, visto que o aposento está trancado
pelo lado de dentro.
Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, no dia em que foi
morto, subiu para o andar superior de uma espécie de sobrado que tinha na sua
fazenda, vizinho à torre do sino e à capela.
A fazenda Onça Malhada do livro é diretamente inspirada
na Fazenda Acauã (ou Acauhan) que pertenceu a João Suassuna, pai de Ariano, e
onde ele, menino, passou parte de sua infância.
Na foto abaixo, de Gustavo Moura, vemos o conjunto desta construção,
que data do século dezoito.
Ao subir para o andar de cima do sobrado, o fidalgo
fechou atrás de si uma porta que vedava o acesso da escada, e uma vez lá em
cima também fechou por dentro a porta do aposento, cujas únicas aberturas eram
algumas seteiras muito estreitas, incapazes de dar passagem a qualquer pessoa.
E ali ele é encontrado morto, várias vezes apunhalado, o sangue ainda golfando,
e marcado a brasa por um ferro que ninguém foi capaz de encontrar.
Nesta foto minha, o acesso atual à parte de cima do “sobrado”,
onde ocorreu o crime:
Anos atrás apresentei um trabalho num Congresso da BRASA (Brazilian
Studies Association) no Recife, convidado por Idelette Muzart, estudiosa e
grande conhecedora da obra de Ariano. O trabalho era justamente sobre as soluções
possíveis para o crime de quarto fechado proposto por Ariano.
Cada leitor do Romance
da Pedra do Reino tem sua teoria.
Dantinhas Villar, filho de Manelito Vilar, da Fazenda
Carnaúba, em Taperoá, suspeita de Silvestre, o irmão mais novo e abobalhado de
Quaderna.
Eu suspeito que o próprio Quaderna teria sido o assassino
de Dom Pedro Sebastião – faltar-lhe-ia o motivo, visto que Quaderna adorava o
tio, mas se alguém me pagar um cachê eu invento três motivos diferentes, cada
qual mais lógico do que o outro.
Há quem suspeite de Arésio, o filho revoltado do velho
fidalgo, agressivo, violento – aquele Caim impiedoso que toda família nobre
costuma produzir.
Há quem suspeite do Major Antonio Moraes, usineiro e
comerciante de minérios em Taperoá, inimigo mortal do fidalgo assassinado, e
que tem como objetivo tomar-lhe a mulher, as terras, a fortuna.
Mas todas as hipóteses esbarram no problema: como alguém
pôde entrar sem ser visto no aposento do sobrado, matar sem ser visto, fugir
sem ser visto?
Quando foi feita a adaptação do romance de Ariano para
minissérie da TV Globo, éramos três roteiristas: Luiz Fernando Carvalho (também
diretor), Luís Alberto Abreu e eu. A gente tinha que fazer uma série de TV
contando uma história que o próprio autor do livro não tinha terminado ainda de
revelar. (Não é esta a única semelhança entre o Romance da Pedra do Reino e Game
of Thrones).
Depois do romance ser publicado em 1971, muita gente
achou que os volumes seguintes avançariam a história e revelariam a solução do
mistério. Ledo engano: os volumes seguintes pularam para o passado, contando apenas
o que tinha acontecido antes da
história já conhecida. (Não é esta a única semelhança entre o Romance da Pedra do Reino e a série Star Wars de George Lucas).
Reunimos nosso triunvirato e encostamos Ariano na parede:
ou revela o mistério ou a gente inventa uma resposta por conta própria.
Assim coagido, o Cabreiro Tresmalhado sentou-se e produziu um manuscrito revelatório de 52 páginas, com data final de 19 de julho de 2006, com a intimidante autorização: “Aí está o que pude escrever. Vocês podem cortar, desenvolver e acrescentar o que for necessário.”
Assim coagido, o Cabreiro Tresmalhado sentou-se e produziu um manuscrito revelatório de 52 páginas, com data final de 19 de julho de 2006, com a intimidante autorização: “Aí está o que pude escrever. Vocês podem cortar, desenvolver e acrescentar o que for necessário.”
Assim, foi feito – na medida do possível. Esse texto, que
permanece inédito, provavelmente será incluído na republicação do material
ligado ao romance, que está nos planos da Editora Nova Fronteira. A solução
proposta por Ariano para o mistério policial foi uma solução heterodoxa, que
talvez não fosse aceita por teóricos rigorosos como S. S. Van Dine ou John
Dickson Carr, mas enfim, esses caras são gringos do hemisfério norte e não
entendem o universo oncístico, negro-tapuia, alanceado e épico em que a
história transcorre.
E só por isso não vou mais revelar aqui a solução Quem
quiser que leia o livro, veja o DVD da série e deduza por si mesmo. Como diria
Sherlock Holmes, “The game is afoot”!
Excelente, Bráulio, desse jeito vou até reler a Pedra do Reino, valeu!
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