O cinema de Ingmar Bergman era considerado, durante a fase mais brilhante de sua carreira (anos 1960-70) um cinema intimista, interiorizado, voltado para dramas existenciais e para a micropsicologia das relações amorosas.
Vergonha
(“Skammen”, 1968) foi um desvio importante nessa tendência, e na época foi
malhado por muita gente.
Os apreciadores dos filmes intimistas se assustavam ao
ver Bergman filmando exércitos, bombardeios, crimes brutais. “Cedeu aos
críticos engajados,” diziam. “Deixou de fazer o que sabe, e quer agora mostrar aos
críticos de esquerda que também tem coragem de criticar os militares”.
Do lado oposto, os apreciadores de filmes políticos
torciam o nariz para um filme que em momento algo perdia o viés alegórico, abstrato.
Um filme de guerra que não mencionava o nome de um país sequer, um partido
sequer, uma ideologia sequer.
Vergonha é um
dos melhores filmes de Bergman. Revê-lo hoje quase 50 anos depois de feito mostra
o quanto o diretor acertou ao não incluir, por exemplo, protestos específicos contra
a Guerra do Vietnam, como lhe foi cobrado na época.
Eva e Jan Rosenberg (Liv Ullmann, Max von Sydow) são
músicos de orquestra que moram numa ilha vagamente escandinava, numa casa
distante de tudo. O rádio de casa está quebrado, e eles não entendem direito
que movimentação de tropas é aquela que veem passando na estrada. Fala-se o
tempo todo na possibilidade de uma invasão. Eles estão mais preocupados em cuidar
da estufa de plantas e das galinhas, em comprar um peixe ou um vinho quando vão
à vila mais próxima.
Discutem com leveza por causa da indolência dele; avaliam
se dá ou não para terem um filho. Vê-se que são um casal sem nada de
extraordinário, cuja vida é uma mistura de rotina harmoniosa e enfrentamento
calmo dos problemas comuns.
Quando a guerra vem, vem passando o rodo em tudo. No
primeiro terço do filme o casal vive uma história de amor íntima e discreta,
com a fotografia em preto e branco registrando olhares, semi-sorrisos, pequenos
gestos. Como disse famosamente Paulo Francis, Bergman é o único cineasta que
filma um copo dágua e a gente sente a presença de um copo dágua ali. (Francis
devia ter atribuído isso ao fotógrafo Sven Nykvyst, mas todo crítico tem suas
viseiras.)
O terço central do filme mostra o tsunami de bombardeios,
metralhas, incêndios, prisões, espancamentos, torturas, humilhações, execuções
brutais.
O terço final é a lenta deterioração moral do casal. Pior
do que a morte, às vezes, é a sensação de ter sobrevivido à custa de concessões
que talvez fosse melhor ter morrido sem fazer.
A cada nova investida dos invasores, a casa deles vai
sendo mais destruída. E o casamento junto com ela.
Liv Ullmann faz mais um dos papéis que expandiu
lentamente ao longo da obra de Bergman: a Mulher Vital. Chamo a essa personagem
de Mulher Vital como antítese para a “Mulher Fatal” de tantos filmes policiais hardboiled, a sereia maligna que traz
consigo a sedução e a perdição.
A Mulher Vital é quem sustenta psicologicamente um homem
inseguro (aqui, Max von Sydow). A mulher dá a esses personagens um foco, um
centro, evita que eles se auto-destruam por excesso de voluntarismo ou definhem
por falta de iniciativa.
Jan Rosenberg é o personagem mais trágico da história. A
guerra pega um sujeito hesitante mas boa praça e o transforma num canalha
insensível. As pessoas covardes em geral tornam-se mais cruéis do que as outras
quando estão numa posição de poder.
Outro personagem trágico é Jacobi, o ex-prefeito, em
princípio o vilão da história. Interpretado por Gunnar Bjornstrand, um ator
frequente nos filmes de Bergman, ele é aquele típico funcionário público “gente
boa” que se torna aderente de primeira hora ao fascismo da vez. Vira portador
do fascismo como quem é portador de uma doença.
A guerra extrai dele o que ele tem de pior, ele sabe
disso, e deixa-se matar com a fixidez dos suicidas.
Apesar dos bombardeios e das brutalidades, a maioria das
mortes do filme ocorrem fora de quadro. Bergman não é de mostrar tripas
explodindo para fora de um abdômen. Mas quando o carro dos Rosenberg, em fuga,
para diante de uma casa de campo em chamas e Eva se ajoelha junto ao corpo de
uma menininha caída no chão, o enquadramento, o som, a expressão da atriz dão
àquela morte anônima um peso de realidade proporcional ao que Francis
reconhecia no copo dágua.
A guerra faz mais do que matar as pessoas: deixa-as vivas
e mata as pessoas que eram antes. A pessoa que sobrevive no mundo dominado pelo
inimigo torna-se meio cúmplice desse
inimigo. Torna-se parte dele. Embrutecida, passa a querer agir como ele, pensar
como ele. Não há vergonha maior do que esta, a de sobreviver nesses termos.
A sequência final mostra o casal juntando-se a um grupo
que foge para o continente num barco. O motor pifa. A comida acaba, a água
acaba. E o barco fica rodando sem avançar, num mar juncado de corpos de
soldados em decomposição.
Vergonha é um
filme sobre a inutilidade de sobreviver depois que um certo limiar de concessão
é ultrapassado.
Este talvez seja um dos únicos filmes que abordam a guerra a partir da perspectiva de civis. Em geral a perspectiva é a dos soldados ou das vítimas civis e militares. Fabiano Hoelz
ResponderExcluirExiste o Homem Vital? Em que obra se pode encontrar um exemplo de HV? Abraço e parabéns.
ResponderExcluirEspetacular.
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