domingo, 21 de maio de 2017

4236) "No tempo de Almirante" (21.5.2017)



Poucos caras são tão interessantes na Música Popular Brasileira da primeira metade do século 20 quanto Almirante (1908-1980), que foi cantor, compositor, produtor musical, redator e produtor de programas de rádio, grande pesquisador. Chamava-se Henrique Foreis Domingues; eu sempre pronunciava “Forêis” esse sobrenome dele, mas mudei a pronúncia ao ver esse trecho de uma carta em verso escrita para ele por Aloísio de Oliveira, então (em 1943) morando nos EUA:

(...)
Se eu soubesse mais cedo
que pra você escrever
tivesse que aparecer
um caso de compaixão
que falasse ao coração
do meu amigo Foreis,
eu já teria arranjado
teria falsificado
uma porção de Josués.

Aloísio fazia parte do Bando da Lua e estava nos EUA acompanhando Carmen Miranda, uma das grandes amigas e parceiras musicais de Almirante. Pouca coisa que aconteceu de importante na música radiofônica das décadas de 1930 em diante não teve Almirante por perto. Foi também grande parceiro (e depois biógrafo) de Noel Rosa, seu companheiro do famoso “Bando de Tangarás”.

Em 1930 Almirante compôs (com Homero Dornelas) e gravou o samba “Na Pavuna” – uma gravação histórica. Ao que se diz, foi a primeira música gravada no Brasil utilizando as percussões típicas do samba (tamborim, surdo, pandeiro, cuíca, etc.).  Nenhum produtor musical ou técnico de som da época admitia que esses instrumentos fizessem acompanhamento – era só orquestra ou instrumentação “delicada”. “Na Pavuna” foi um sucesso fenomenal, tão importante quanto o primeiro samba gravado, o “Pelo telefone” de Donga e outros.

“Na Pavuna” (gravação original):

Outros sucessos gravados por Almirante fazem parte de qualquer antologia do samba ou da marchinha brasileira:

“O Orvalho Vem Caindo” (Noel Rosa e Kid Pepe)

“Touradas em Madri” (Braguinha e Alberto Ribeiro):

Gavião Calçudo” (Pixinguinha e Cícero de Almeida):

Sem falar nesta marchinha, que todo torcedor do Treze já cantou:

Marcha do Grande Galo” (Lamartine Babo e Paulo Barbosa):

A biografia No tempo de Almirante – uma história do Rádio e da MPB, de Sérgio Cabral, Pai (Ed. Francisco Alves, 1990) me chegou pelas mãos do parceiro musical Alfredo Del-Penho. Traz em 400 páginas um imenso material sobre esse personagem bem humorado, humano, incansável, que era chamado “A Mais Alta Patente do Rádio Brasileiro”. Almirante surgiu e cresceu com o rádio, e a ele, talvez mais do que à música, dedicou sua vida inteira, trabalhando em todas as grandes emissoras da época.

Interatividade é uma palavra que muita gente conheceu depois da Internet, mas era uma das grandes armas do rádio, que pedia insistentemente colaborações, críticas, informações, participação de todo tipo dos seus ouvintes, através do correio. Ouvintes enviavam letras, partituras musicais, recortes de jornais e revistas, para terem seus nomes citados nos programas que acompanhavam fielmente.

Almirante reuniu um espantoso arquivo de informações mandadas do Brasil inteiro para seus programas de variedades, como “Curiosidades Musicais”. Ainda em vida, ele repassou esse arquivo para o Governo Estadual, que criou com este material o atual Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro.

Numa carta de 1940 a Celestino Silveira (pág. 192-193 do livro), Almirante explica essas suas décadas de atividade:

(...) Comecei, então, a fazer o programa sobre todos os assuntos. O título a tudo permitia. Como a Nacional é uma estação de grande penetração  no nosso interior, passei a pedir colaborações dos ouvintes. Graças a isso, pude mostrar pelo Rádio belezas musicais do Brasil inteiramente desconhecidas, coisas que ninguém até hoje teve a iniciativa de fazer com a insistência com que eu faço. Foi assim que consegui fazer irradiar temas folclóricos que nunca tinham sido mostrados pelo Rádio. Cito, como exemplo, as cantigas de roda dos estados, pregões do Rio e dos estados, melodias de trabalho, cantigas e rezas para defuntos, rezas para chamar chuva, melodias de Natal e de Reis, cantigas de cegos e muitas outras. (...) Todos os meus colaboradores, desde o que me enviou a cantiga mais valiosa, até o que me informou o fato mais insignificante, sempre tiveram os seus nomes citados no programa.

Os programas sobre assuntos como o dos instrumentos exóticos (já feito) e o de pios de caça e o da música dos ruídos (ambos ainda por acabar) me fazem perder um tempo inacreditável. Basta que eu diga que o dos instrumentos rústicos tomou-me o ano inteiro. Um ano a fio reunindo elementos, um ano convocando instrumentistas curiosos, tocadores de violino de uma corda só, de flautas e clarinetas de bambu, de folhas de árvore, de lápis nos dentes e os legítimos berimbaus de cuia.

Dessa curiosidade, aliada à possibilidade de recolher e de divulgar, surgiu uma das mais interessantes amizades e parcerias de Almirante – com Luís da Câmara Cascudo, o grande folclorista natalense. À primeira vista parece uma dupla improvável, o cantor de sambas e o etnólogo livresco. Mas os dois pertenciam à mesma espécie, a do pesquisador autodidata, que recolhe informações, estuda, vasculha, pergunta, assedia, junta material, enche estantes e mais estantes de informações que não interessam a ninguém da sua época.

Cascudo, em suas raras idas ao Rio, ia ver no auditório os programas de Almirante. De volta a Natal, mandava-lhe cartas como esta, de 1964 (pág. 338-339):

(...) Desejava, Almirante, dois documentos partidos de suas garras:
a)      Uma batucada legítima. Música e letra devem ser sem interesse (?), mas estou precisando de informação limpa e clara, como você sabe dar aos peticionários jagunços do meu tope e feição provinciana.
b)      Uma embolada. Música e basta uma amostra dos versos, não todos. Apenas refrão e um versinho característico. 
Esse é o choro... Sim. Uma pergunta que tem engasgado os técnicos e proprietários do assunto. Para você, o que é que diferencia choro de samba, ou, como diz o povo, chorinho de sambinha?
Solicito que Vossa Magnificência responda esse peditório, a fim de que o solicitante não fique com os dedos no ar e a máquina aberta num indeterminado compasso de espera. No mais, querido Almirante, receba o afeto que se encerra neste peito não senil.

O rádio o tornou uma figura íntima do Brasil inteiro, uma referência de cultura popular como a televisão transformou, décadas depois, figuras como Rolando Boldrin ou Téo Azevedo. Estudiosos como Renato Almeida escreviam para consultá-lo, como nesta carta de 1940 (pág. 196):

Uma coisa que quero lhe perguntar: o que se chama ‘samba de partido alto’? E, mais uma pergunta: o choro tem três partes, quais são elas? Desculpe essas caceteações, mas você é uma das raras pessoas a quem a gente pode se dirigir no Brasil. E um pedido final: você pode mandar-me aquele sambinha da Penha, que cantou no programa de ontem? E, com os votos de um felicíssimo 1940, lhe mando um abraço muito agradecido e afetuoso.

E até um romancista do porte de Érico Verissimo, fazendo pesquisa para um romance de época, lhe escrevia em 1950 (pág. 258-259):

Tomo a liberdade de pedir-lhe uma série de informações de que estou necessitado para o segundo volume do meu romance O Tempo e o Vento – “O Retrato” – e que cobrirá o período entre 1909 e 1945.
a)      Pode dar-me o nome de algumas músicas de dança mais populares entre 1910 e 1915?
b)      E das modinhas, lundus, etc. do mesmo período?
c)       Quais os discos mais populares da famosa Casa Édison, do Rio de Janeiro?
d)      Pode fornecer-me a letra da canção “Talento e formosura”?
e)      E da cançoneta cujo estribilho é “Varre varre, minha vassourinha”?
f)       Quando começou a voga de “O luar do Sertão”?
g)      E a de “Caraboo”?

Como você compreenderá, essas coisas – danças, canções, etc. – ajudam a criar atmosfera e a marcar o tempo. Como um pobre pagamento por essa sua colaboração, estou lhe remetendo um exemplar do primeiro volume de O Tempo e o Vento – com um abraço do seu fã Érico Verissimo.

Almirante entrou na minha vida quando eu tinha cerca de 8 anos, mas não foi através da música. Foi através do seu programa radiofônico de histórias de assombração, “Incrível! Fantástico! Extraordinário!” – mas este é um assunto ao qual voltarei noutro dia.








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