Uma biografia recente de Franz Kafka, escrita por Reiner
Stach, tem o interessante título de Isto
é Kafka? 99 Descobertas. Quando parecia que tudo já havia sido escrito
sobre o profeta do mundo irracional do século 20, parece que Stach conseguiu
desencavar um número respeitável de fatos a seu respeito.
Não devemos esquecer, também, que por motivos burocráticos e
jurídicos uma parte considerável do que Kafka escreveu continua (pasmem!)
inédita até hoje. Papéis que ele deixou a cargo de seu amigo Max Brod não foram
publicados porque há uma kafkeana batalha judicial em torno deles. Já escrevi a
respeito aqui, em “O moído de Kafka”:
Um artigo em The Paris
Review sobre a biografia de Stach traz um comentário interessante. O
biógrafo teria levantado informações sobre duas “invenções” de Kafka, duas
idéias que ele teve para ganhar dinheiro, que explorou em conversas e cartas
com amigos, mas que, por um motivo ou outro, não prosperaram.
A primeira dessas idéias ocorreu a Kafka e seu amigo Max
Brod entre agosto e setembro de 1911, quando os dois viajavam pela Europa. Kafka
pensou em criar um guia de viagem intitulado Billig (“Barato”), dando dicas aos viajantes a respeito de hotéis,
transportes, restaurantes, pontos turísticos, etc., que era possível percorrer
sem gastar muito dinheiro.
Magino eu que em 1911 fazer turismo na Europa era coisa de
rico, aqueles ingleses ou alemães que viajavam de trem ou de navio levando
quinze malas de roupas, como a gente vê em Morte
em Veneza, nos filmes de James Ivory ou nos livros de Henry James. A idéia
dos dois amigos era estender esse privilégio aos menos abonados.
Há um documento, quase todo na caligrafia de Brod, mas com a
colaboração de Kafka, em papel timbrado de um hotel em Lugano (Suíça), escrito
em setembro de 1911, e diz:
(...) Nossa era tão democrática já proporciona todas as condições para
viagens fáceis para qualquer lugar, mas isto é algo que passa praticamente
despercebido. Nossa tarefa é coletar estas informações a torná-las conhecidas
de modo sistemático. (...) Muito pouco
disto aparece nos guias de viagens. (...) Nós nos dirigimos àqueles que
consideram viajar algo muito caro, seja por equívoco, seja por má informação, e
que se mantêm em regiões próximas de suas próprias cidades (que têm a sua
beleza, mas já são demasiado conhecidas). Queremos fornecer informações sobre
outros destinos que custam o mesmo que essas estações de verão, possivelmente
incluindo também custos de transporte.
Eles dão algumas dicas sobre a organização dos seus
possíveis Guias:
Nada de geografia minuciosa; apenas as rotas. (...) Indicamos apenas um
hotel, e outros em ordem descendente, para o caso de aquele estar lotado. (...)
[Na caligrafia de Kafka:] Não é para viajantes nem muito rápidos nem muito
lentos, mas para um grupo mediano. Desvios são mais fáceis, uma vez que é
sempre possível fazer adições num plano bastante preciso. (...)
Outrs dicas registradas pelos dois, em anotações rápidas:
Não temer a moeda errada. Concertos gratuitos. Dias mais baratos (p.
ex., galerias de arte) no fim de viagens mais caras. Onde conseguir ingressos
grátis como as pessoas locais. Navios a vapor, segunda classe. Não temer a
terceira classe na Itália. Cor local. Reforma dos mapas do país e da cidade?
Era um projeto embrionário, ainda na fase de rascunho, como
se vê – aquelas páginas em que a gente vai anotando tudo que se conversa, todas
as pequenas idéias nascidas da troca de impressões, e que podem depois ser
desenvolvidas ou não.
Infelizmente, o projeto de Brod e Kafka – que seria algo
como um Europa a 10 dólares por dia
daquela época – nunca se concretizou.
A segunda invenção não chega a ser invenção, apenas a
anotação rápida de uma idéia; mas seu interesse é por ser algo um pouco mais
ficção científica. Em 1913, Kafka teve a idéia da criação de um mecanismo
reunindo duas tecnologias que bem ou mal já existiam: o telefone e a máquina de
ditar (uma espécie de gravador), também chamada “parlógrafo”.
O escritor certamente teve sua curiosidade despertada devido
ao fato de sua noiva na época, Felicia Bauer, trabalhar na filial de Berlim da
empresa Carl Lindstrom AG, “onde ela estava encarregada da divulgação do
parlógrafo, uma máquina de ditar. Bauer inclusive apareceu num filme de
propaganda que Lindstrom produziu e distribuiu.” No filme, ela é vista durante alguns segundos
manipulando um parlógrafo e uma máquina de escrever.
Dizia Franz, escrevendo par a noiva:
A invenção de um cruzamento entre o telefone e o parlógrafo certamente
não deve ser difícil. Tenho certeza que depois de amanhã você vai me comunicar
que o projeto já alcançou sucesso. Claro que isto teria um impacto enorme nos
escritórios editoriais, agências de notícias, etc.
Mais difícil, mas também possível, sem dúvida, seria uma combinação
entre o gramofone e o telefone. Mais difícil porque a gente não entende direito
o que diz um gramofone, e um parlógrafo não pode pedir a ele que fale com mais
clareza. Uma combinação entre o gramofone e o telefone também não teria grande
significação de um modo geral, mas para pessoas como eu, que receiam o
telefone, seria um alívio. O problema é que pessoas como eu temem também o
gramofone, de modo que não seria uma grande ajuda.
A propósito, seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao
telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma
pequena conversa entre si. Mas, minha querida, a combinação do parlógrafo com o
telefone tem absolutamente que ser inventada.
O artigo informa que isto de fato já tinha acontecido, com o
“Telefonógrafo” patenteado por Ernest O. Kumberg em 1900, invenção que não foi
pra frente por ser cara e trabalhosa.
Aqui, o artigo da Paris
Review:
Mas para quem lê Kafka fica uma pequena nostalgia de imaginar
como ele poderia ter explorado literariamente, num dos seus microcontos de
página e meia, esta preciosa idéia como ponto de partida:
(...) seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em
Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena
conversa entre si.
Nenhum comentário:
Postar um comentário