No teatro (e às vezes no cinema) chama-se de “quarta parede” a parede invisível que separa o palco da platéia. É a barreira da ficção. Sabemos que nada daquilo aconteceu de verdade, que os personagens e os fatos são fictícios, mas nada nos impede de suspender voluntariamente a descrença e mergulhar no drama humano que parece estar acontecendo ali, a poucos metros de nós.
Chama-se então de “quebrar a quarta parede” quando, por
exemplo, o ator se volta para a platéia e diz alguma coisa que quebra a ilusão
ficcional e nos traz de volta à realidade da situação, ao fato de que somos
espectadores que pagaram para ver uma coisa encenada.
Alguns o fazem com intuito filosófico, para fazer o
espectador refletir. O teatro de Bertolt Brecht usava muitas vezes esse recurso
para obter o efeito que ele chamava de distanciamento ou estranhamento. “Ei,
cara! Acorde! Isso não é verdade! Somos atores! Não perca o foco!”.
Outros, como mero recurso engraçadinho – os famosos
“cacos”, ou piadinhas preparadas de antemão, que os atores de comédia de vez em
quando soltam no meio das falas, referindo-se a fatos políticos da véspera ou a
pessoas presentes na platéia.
Nos espetáculos populares como o Teatro de Mamulengo ou
as Comédias Circenses essa quebra é muito frequente, pelas próprias circunstâncias
meio atabalhoadas da apresentação, e pela presença de um público que gosta de
participar com gracejos, tiradas, provocações, etc.
Na literatura isso adquire muitas formas. Vou dar um exemplo pouco conhecido, do
romance de Ariano Suassuna O Rei
Degolado: As Infâncias de Quaderna (1976-77), nunca publicado em livro, e
que apareceu na forma de folhetins semanais no Diário de Pernambuco, do Recife.
O livro é uma continuação do Romance da Pedra do Reino (1971), e conta o interrogatório a que o
herói e narrador, D. Pedro Dinis Quaderna, preso na Cadeia pública, está sendo
submetido pelo Juiz Corregedor da capital do Estado, que veio investigar uma
série de crimes e de sublevações armadas acontecidas em Taperoá.
No Folheto XXXVII, “O canto e a coroa da raça”, Quaderna
está narrando ao Corregedor um episódio de sua infância, quando foi raptado por
um bando de ciganos e depois acabou sendo resgatado pelo cangaceiro Antonio
Silvino, que o levou de volta para a fazenda da sua família. Diz Quaderna ao
Juiz:
(...)
Tanto assim que, anos depois, quando foi aprisionado pela Polícia – ao
ser ferido num combate – Antonio Silvino mandou esse Chapéu-de-couro a Dom
Virgolino Ferreira, o Lampião, passando-lhe, desse modo, o título, e ungindo-o
como Rei do Cangaço, como Saul fez com Davi. E deu-lhe [sic – mas deve ser “dou-lhe”]
uma informação a título de curiosidade, Sr. Corregedor: quando Lampião foi
degolado, estava com esse mesmo chapéu-de-couro – ou melhor, com esta sagrada
Coroa sertaneja, feita de couro e estrelada de prata!
O Corregedor me interrompeu de novo, com aquelas manias de exatidão dele:
– Senhor Dom Pedro Dinis Quaderna, o senhor aí, na sua exaltação
cavalheiresca e régia, acaba de cometer um engano: pode ser que Lampião use
esse chapéu-de-couro que foi de Antonio Silvino, mas ele não foi degolado não,
está vivo!
Dei uma pancada com a mão na testa, recordando-me e voltando ao raso
real:
- Ai, é mesmo, Sr. Corregedor! Muito obrigado pela advertência, porque
minha Epopéia é rigorosamente histórica, podendo, no máximo, haver nela uns dez
ou doze anacronismos, porque aqui, na Cadeia, não posso consultar a cada
instante meu arquivo particular de Historiador! Mas é verdade, o senhor tem
razão! Estamos a 14 de Abril de 1938 e Lampião só será degolado daqui a quatro
meses, na Fazenda Angicos, em Sergipe, no mês de Agosto! É que, no meu Juízo profético
de Epopeieta, meus olhos cegos de Édipo-sertanejo veem o Passado, o Presente e
a Futuro como um todo, pois para mim, como para Deus, o Tempo é um só!
Quaderna é um desses narradores que se safam de qualquer
problema na maior cara-de-pau. E o faz porque mantém, do princípio ao fim
desses enormes romances, numa rara façanha literária, esse tom
grandiloquente-megalomaníaco e satírico-mangatório a respeito de si mesmo.
Deixando Quaderna de lado, podemos nos perguntar: por que
Ariano publicou este trecho?
Me parece muito claro que numa primeira redação do
capítulo o autor deixou-se arrastar pelo entusiasmo, junto com Quaderna, e
botou a informação anacrônica, sem perceber a discrepância de datas. Numa
releitura, veio-lhe à mente que àquela altura da sua narrativa Lampião estava
vivo ainda.
Teria sido mais simples, claro, cancelar o texto e passar
adiante. Aliás, Ariano Suassuna comentou, em numerosas entrevistas e artigos,
que seu método de trabalho consistia em escrever uma primeira versão à mão,
depois passar a limpo na máquina de escrever, depois rever essa cópia à mão,
fazendo correções e adendos, depois datilografar de novo, quantas vezes fosse
preciso.
Suponho que numa dessas revisões o erro de data lhe
saltou aos olhos, mas mesmo assim ele resolveu, em vez de eliminar tudo, deixar
o erro e criar uma quadernice em cima dele.
Esse livro estava sendo escrito para aparecer em
folhetins dominicais de jornal, numa época em que Ariano estava ocupadíssimo,
envolvido com mil afazeres. Tinha sua cadeira da Universidade Federal de
Pernambuco, o cargo de secretário de Educação e Cultura do Recife (1974-78), a
supervisão da Orquestra Romançal Brasileira (criada em 1975) e do Balé Armorial
do Nordeste (criado em 1976).
Posso imaginar o corre-corre em que esses folhetins eram
produzidos, e a piada de Quaderna sobre não poder consultar a toda hora seus
arquivos porque está na cadeia deve refletir em alguma maneira a roda-viva do
autor.
Mas ele deixou o erro, e curtiu em cima. Porque isso tem
tudo a ver com o folhetim. Todo mundo sabe que os folhetins de Charles Dickens,
de Balzac e de todos os outros eram escritos assim, de afogadilho, a toque de
caixa, ao correr da pena. Cheios de erros de continuidade, informações
faltando, nomes de personagens trocados, ações interrompidas e nunca mais
retomadas, e assim por diante.
Quando chegava o momento da publicação em livro, esses
erros eram corrigidos e aí está, para não me deixar mentir, uma próspera
sub-indústria acadêmica especializada em comparar uma versão com a outra.
O folhetim é um exemplo muito bom de prosa improvisada. O
veterano repentista Zé de Cazuza diz que todo verso é feito de improviso,
inclusive o verso escrito; só que no verso escrito o poeta tem a chance de
voltar atrás e dar uma ajeitadinha, mas o verso cantado... saiu, acabou-se.
Os erros de improvisação do folhetim eram extirpados no
livro, e cabe inclusive a dúvida: Ariano cortaria esse trecho, se As Infâncias de Quaderna tivessem saído
em livro? Eu maldo que não. Porque é um desses exemplos saborosos de um
Narrador tão onipotente que fatura a seu crédito os seus próprios enganos.
Quaderna é um herói picaresco do tipo teflon: nele nenhuma crítica gruda,
porque ele é o primeiro a concordar com o crítico, falar mal de si próprio, e
arrematar tudo com um nó onde ele volta a ser – modestamente, como sempre, como
no presente caso – igual a Deus.
Heroi teflon, muito bom.Outro autor que recorria a essa estratégia era Eugene Sue. Nos seus romances havia personagens que até ressucitavam a pedido dos leitores.Janete Clair usou esse recurso em suas novelas.Show como sempre Bráulio.
ResponderExcluirBravo Bráulio!
ResponderExcluirMe mandaram o link deste texto e li sem me preocupar do seu autor até chegar à assinatura final, mas so podia ser você mesmo, Braulio, agudo leitor de Ariano! Obrigada por mais esta homenagem critica e inteligente ao Quaderna, narrador impar, de quem acompanhei os passos novelescos no Diario de Pernambuco em 1976 e que espero reencontrar em breve na edição da obra completa de Ariano. Até breve, Idelette
ResponderExcluirSempre Braulio Tavares. Muito bom texto.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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