sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

4206) Menções ao cordel na literatura (3.2.2017)



A pesquisa sobre a história da literatura de cordel no Brasil tem dois caminhos.

O primeiro, mais importante para nós, nordestinos, parte de Leandro Gomes de Barros e os folhetos que ele começou a imprimir em meados da década de 1890, no Recife. É a raiz da nossa literatura popular impressa, porque versos recitados e copiados à mão já circulavam desde muito antes, usando os mesmos temas e as mesmas características formais (estrofes, rimas, etc.) que os folhetos iriam usar. Muitos destes versos estão em obras como Cantadores e Poetas Populares, de F. das Chagas Batista (1929, reeditado em 1997 pela UFPB, João Pessoa), que transcreve versos dos mestres do Teixeira na segunda metade do século 19.

O segundo caminho está plantado no Rio de Janeiro, e diz respeito aos folhetos impressos em Portugal e trazidos para cá ao longo de todo o século 19, como consequência da vinda da corte imperial para o Rio em 1808. São muitas as referências à venda de livretos populares de meados de 1850 em diante. O termo “cordel”, tão debatido pelos estudiosos do assunto, denota o uso de expor dessa forma não somente os folhetinhos em versos, mas (penso eu) todo tipo de livro.

Em seu Como e Por Que Sou Romancista (1873), capítulo VII, José de Alencar usa esta expressão ao contar os percalços de publicação do seu O Guarani (1857), e diz:

A edição avulsa que se tirou d’O Guarani, logo depois de concluída a publicação em folhetim, foi comprada pela livraria do Brandão, pôr um conto e quatrocentos mil réis que cedi à empresa. Era essa edição de mil exemplares, porém trezentos estavam truncados, com as vendas de volumes que se faziam à formiga na tipografia. Restavam pois setecentos, saindo o exemplar a 2$000. 

Foi isso em 1857. Dois anos depois comprava-se o exemplar a 5$000 e mais nos belchiores que o tinham a cavalo do cordel, embaixo dos arcos do Paço, donde o tirou o Xavier Pinto para a sua livraria da Rua dos Ciganos. A indiferença pública, senão o pretensioso desdém da roda literária, o tinha deixado cair nas pocilgas dos alfarrabistas.

A expressão “a cavalo no cordel” descreve bem o uso dos vendedores: um cordão esticado horizontalmente e os livretos, abertos ao meio, “montados” em cima do cordão.

O termo “belchior” usado por Alencar refere-se aos comerciantes de coisas usadas, que tanto podem ser roupas (vamos lembrar Noel Rosa: “O meu chapéu vai de mal a pior, e meu terno pertenceu a um defunto bem maior – dez tostões no belchior!”, O Orvalho Vem Caindo) como também livros – o Dicionário Houaiss registra o termo como “proprietário de sebo” e “alfarrabista”. Daí a queixa de Alencar.

Os “arcos do Paço” a que o escritor cearense se refere são provavelmente os arredores do Paço Imperial, na praça XV de hoje, como o Arco do Teles, por onde ainda passo eu de vez em quando.

Aquele largo servia como foco de um comércio popular dessa natureza, como confirma Machado de Assis no conto “Uns braços” (1885), recolhido em livro em Várias Histórias (1896), e cuja ação é devidamente datada:

Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870. (...)

É a história de um rapaz do interior que vai estudar no Rio, morando de favor com um casal mais velho, o que gera uma atração entre ele e a dona da casa, situação parecida com a do conto clássico Missa do Galo (em Páginas Recolhidas, 1899).

Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo, - estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.

Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. 

Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. 

Machado confirma vários detalhes de Alencar, e é bom que “Uns braços” seja explicitamente situado por ele em 1870, o que permite imaginar que a ação descrita por ele era comum nessa época. Machado usa por duas vezes o termo “folheto”. Indica que foram comprados no Largo do Paço. Lembra que eram “contos de outros tempos” e que eram “comprados a tostão”, ou seja, estavam ao alcance da bolsa de um estudante pobre.

E o título lembrado por ele é justamente um dos clássicos, a História da Princesa Magalona, conto de origem francesa minuciosamente estudado por Câmara Cascudo em seus Cinco Livros do Povo (Ed. José Olympio, 1953), e que Cervantes também menciona de passagem no capítulo XL da segunda parte do Dom Quixote, no episódio do cavalo voador de madeira.

Cascudo refere a existência de edições portuguesas do romance em 1625 e 1783, além de numerosas outras em datas posteriores, até o surgimento das versões brasileiras da mão de vários autores, entre eles o inevitável João Martins de Athayde. E observa também que as versões portuguesas eram em quadras (ABCB) e as brasileiras em sextilhas (ABCBDB).

(continua)








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