Segundo o Equality Trust, as 100 famílias mais ricas da Grã-Bretanha aumentaram sua fortuna em cerca de 57 bilhões de libras entre 2010 e 2016, um período em que a renda média do país sofreu uma queda. A Oxfam International afirma que o 1% mais rico da população mundial detém hoje mais riqueza do que os 99% restantes somados.
Pode não parecer, mas a riqueza absoluta é um tema recorrente
na ficção científica. Não precisa envolver espaçonaves, alienígenas, robôs,
pistolas desintegradoras. Estou falando da FC que especula o formato e a
substância das sociedades futuras, partindo do nosso presente e exagerando
alguns aspectos.
Riqueza é um deles. Para quem gosta de fazer FC
sociológica, é interessante investigar, ficcionalmente, os limites do poder
financeiro.
Alguém dirá que isso já é feito pelos romances mainstream tipo Sidney Sheldon ou
Danielle Steel, a respeito de executivos milionários com suas esposas
neuróticas entupidas de barbitúricos, suas amantes longilíneas e vorazes, suas
tenebrosas transações em Wall Street, seu consumo conspícuo de bugigangas kitsch que custam os olhos da cara, suas
férias em Aruba ou nas Bahamas.
A FC, no entanto, explora a ligação entre riqueza
fabulosa + absoluta impunidade moral + alta tecnologia a serviço de quem pode
investir pessoalmente nela algumas dezenazinhas, algumas centenazinhas de milhões.
Em “A Carícia” (“The Caress”, 1990) de Greg Egan (que
incluí em Detetives do Sobrenatural,
Casa da Palavra, 2014), um milionário recorre à engenharia genética para
produzir seres híbridos e com eles reconstituir, usando criaturas vivas de
carne e osso, uma pintura fantástica pela qual tem obsessão. Só isso. Ele quer
ver o quadro “de verdade”; depois que vê, vai fazer alguma outra coisa.
Em “Death Do Us Part” (1997), Robert Silverberg descreve
a vida de bilionários do futuro, capazes de prolongar indefinidamente a vida e
a juventude. Ele começa o conto relatando a lua de mel dos protagonistas:
“Era o primeiro casamento dela, e o sétimo dele. Ela tinha 32 anos, e
ele 363; aquela antiga relação entre a primavera e o outono da vida. Passaram a lua-de-mel em Veneza, em Nairobi,
na Cúpula do Prazer da Malásia, e depois num daqueles sofisticados ‘resorts’
L-5: uma reluzente esfera transparente com sol artificial num ciclo de 24 horas
e cachoeiras que se despejavam como cascatas de diamantes. E depois partiram para a bela casa aérea
dele, suspensa em cabos retesados mil metros acima do Pacífico, para começarem
ali a parte cotidiana de sua vida em comum”.
Em “Neve” (“Snow”, 1985), de John Crowley (que incluí em Contos Fantásticos de Amor e Sexo, Ímã
Editorial, 2011), as pessoas ricas gravam suas vidas por completo através de
uma “vespa”, um mini-drone com câmera que as acompanha por toda parte, para que
nenhum dos preciosos momentos de suas vidas se perca para a posteridade.
No romance Holy
Fire (1996) Bruce Sterling descreve minuciosamente como a ciência do futuro-próximo
pode (a um custo financeiro imenso, claro) reconstruir uma pessoa idosa,
rejuvenescendo-a – e o mundo se torna uma gerontocracia governada por
indivíduos ricos, centenários, com aparência eternamente jovem.
O conto “The Totally Rich” do inglês John Brunner (em Worlds of Tomorrow, 1963; publicado em
livro em Out of My Mind, New York,
Ballantine, 1967) conta uma história parecida – a de uma mulher que tenta manter-se
eternamente jovem e ao mesmo tempo quer ressuscitar o namorado que já morreu.
Um eco do clássico Ela, a Feiticeira
(“She”, 1887) de H. Rider Haggard.
Mais interessante do que a história em si, que é bem
escrita mas sem grandes novidades, é a reflexão inicial de John Brunner sobre a
vida dos superbilionários. (É a parte profética do conto, porque os “totalmente
ricos” de hoje possuem fortunas que 50 anos atrás eram inconcebíveis mesmo para
autores de FC.)
Diz ele:
“Eles são os totalmente ricos. Você nunca ouviu falar neles porque eles
são as únicas pessoas no mundo ricas o bastante para poder comprar o que
desejam: uma vida totalmente privada. (...) Quantos deles existem, eu não sei.
Tentei calcular o total somando o PIB de
todos os países da Terra e dividindo pela quantia necessária para comprar o
governo de uma potência industrial. Não preciso dizer que você não pode ter
privacidade total se não for capaz de comprar pelo menos dois governos. Acho
que deve haver uma centena dessas pessoas. Já conheci uma delas, e
provavelmente outra. (...)
“Eles não estão no mapa. Entende isso? Literalmente, qualquer lugar
onde eles escolham viver torna-se um espaço em branco nos atlas. Não estão nas
listagens do Censo, nem no Quem é Quem, nem no Pares do Reino
Britânico de Burke. Não aparecem nos registros de imposto de renda, e o
correio não tem seu endereço. Pense em todos os lugares onde o seu nome
aparece: registros escolares amarelecidos, arquivos de hospitais, notas fiscais
de lojas, documentos assinados. Em nenhum desses lugares o nome deles está
visível.
“Eles não são governantes absolutistas. Na verdade, não governam coisa
alguma a não ser o que lhes diz respeito diretamente. Mas eles se assemelham
àquele Califa de Bagdá que encomendou a um escultor “a fonte mais bela do
mundo”. Quando ficou pronta (e era bela de verdade) ele perguntou ao escultor
se havia algum artista capaz de superá-la em beleza. O escultor afirmou que
não. O Califa disse: Paguem a ele o que foi combinado, e arranquem os seus olhos”
Estes (dizia John Brunner, já nos idos de 1963) são os Totalmente
Ricos.
Sempre um bom texto aqui e interessante material para reflexão.
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