A poesia de Ferreira Gullar me chegou através do LP de
estréia de Caetano Veloso, onde ele cantava “Onde Andarás”, com letra do poeta.
Um bolero dolente, e lá pelo meio virava uma espécie de tango onde o intérprete
mudava surpreendentemente de voz, imitando Orlando Silva. Fiquei associando esta
canção àqueles fins de tarde de domingo, quando o sol começa a se por e a gente
está meio de bobeira, preparando a hora de voltar pra casa:
Onde andarás
nessa tarde vazia
tão clara e sem fim?
Enquanto o mar
bate azul em Ipanema,
em que bar, em que cinema,
te esqueces de mim?
Gullar àquela altura (1968) já tinha publicado livros
importantes, e não tardou para que eu me agarrasse à sua poesia, que sempre me
pareceu, em seus melhores momentos, reunir o melhor de vários mundos: as
cadências das redondilhas portuguesas (que ele explora tão bem quanto Cecilia
Meireles), as imagens surpreendentes e inexplicáveis do surrealismo, a dicção
das ruas que o aproxima das letras da MPB, o vigor imagético que
(principalmente nas obras mais encorpadas, como o Poema Sujo) fazem o poema virar quase que um roteiro para uma
viagem da câmera cinematográfica.
O Gullar teórico também marcou muito a minha geração, até
porque ele fundamentava suas teorias sobre cultura e brasilidade não apenas na
literatura, onde eu me movia mais à vontade, mas também nas artes plásticas.
Tem dois livros dele que eu li intensamente (gostaria de reler agora) entre os
20 e os 30 anos, que foram Cultura Posta
em Questão (1965) e Vanguarda e
Subdesenvolvimento (1969). Me deixaram conceitos que aplico até hoje.
Nunca tive grande contato pessoal com ele, embora
tenhamos participado juntos de mesas redondas, por mais de uma vez. Era um
contato rápido, de cumprimentos, mas sem conversa, o que sempre lamentei.
Gullar era um esquentado, pelo que me dizem, e tem no
currículo polêmicas famosas, primeiro com o grupo concretista de São Paulo, e
mais recentemente com os governos do PT. Mas era também (os amigos me contam)
um sujeito compassivo, humano, afetuoso. Era a impressão que deixava nas
pessoas com quem conviveu.
Nós, paraibanos, devemos muito a ele, pelo extraordinário
ensaio que fez sobre a obra de Augusto dos Anjos, quando estava no exílio.
Publicado pela Paz e Terra em 1977, Augusto
dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina é um desses casos em que um crítico, em
meras 45 páginas, sem recorrer a grandes bibliografias nem a anos de pesquisa,
mergulha direto nos textos, toca na sua medula e sai dali cheio de revelações.
Exilado em Buenos Aires, Gullar pegou o Eu de Augusto e de certa forma fez com
que o lêssemos pela primeira vez. Uma façanha que eu só comparo à de Eric
Auerbach, também no exílio, criando seu clássico Mimesis (1946) sem ter acesso a grandes bibliotecas, mergulhando
direto na obra de Homero, Rabelais, Tolstoi, revelando a mecânica entre a tradição coletiva e a
inteligência individual dos autores.
Gullar teve uma passagem não muito bem sucedida pelo
poema-protesto na série Violão de Rua,
na época do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos
Estudantes). Quando li um dos seus “cordéis” (acho que foi João Boa Morte, Cabra Marcado Para Morrer, 1962), não achei ali
nada de cordel. Estrofe, sílabas, esquemas de rimas, tudo era uma salada. Me pareceu uma contrafação, uma tentativa de
pastiche feita por quem não conhecia bem o original, e os resultados,
anunciados como “cordel”, acabavam passando para os leitores (e futuros poetas)
uma imagem distorcida.
Era sintoma da época, em que a politização da literatura
levava os autores a recorrerem, meio às pressas, a modelos populares que eles
tinham ouvido cantar sem saber ao certo onde. Algo parecido com os versos de
Antonio Callado em sua peça Forró no
Engenho Cananéia (1964), onde o grande romancista perde a mão ao lidar com
as formas poéticas populares.
Quando esqueceu os modelos e falou somente por si, Gullar
produziu alguns dos mais belos poemas em redondilha da língua
portuguesa-brasileira.
Se eu tivesse que
pegar apenas uma obra dele, faria como muitos: escolheria o Poema Sujo (1976), um poema-livro autobiográfico
onde o poeta, a pretexto de falar de si mesmo, faz um retrato cruel e sincero
do seu país.
Não li nenhum dos seus livros de poesia mais recentes, e
lamento. Quando esses livros saem, recebem boa cobertura da imprensa, que cita,
transcreve. A gente fica conhecendo 10 ou 20 poemas republicados nos
jornais e na web, e de certa forma se dispensa de ler o livro, o que é sempre
um erro. Não importa. Cada poema lido reafirmava sem susto o poeta que eu
sempre soube.
Bom texto. Tive a mesma impressão quando li os cordéis de Gullar, mas isso não faz dele um mau poeta, só revela que ele não conhecia as regras do cordel. Como também sou paraibano, trago de cabeça as regras desse estilo, nossa "poesia parnasiana". Tenho uma pergunta. Bráulio, existe algum livro que reúna todos, ou quase todos os estilos de cantoria, como por exemplo: a décima, a sextilha?... Obrigado pela atenção.
ResponderExcluirOi. Eu acabei de publicar um livro sobre estilos de cantoria: "Cantoria: Regras e Estilos" (volume 1 da série "Arte e Ciência da Cantoria de Viola". Saiu pela Editora Bagaço (Recife), e está à venda por enquanto apenas na loja PassaDisco (Estrada do Encanamento) e na Livraria Cultura do Paço Alfândega (ambos no Recife).
ResponderExcluirObrigado. Tentarei adquiri-lo. Já tenho "Contando Histórias em Versos".
ResponderExcluirCaro Braulio, como faço para adquirir este livro "Cantoria: Regras e Estilos" daqui do interior da Bahia?
ResponderExcluir