É inevitável comparar este filme, Aquarius (em cartaz pelo Brasil) com o
anterior de Kleber Mendonça, O Som ao
Redor. Existe continuidade temática, dramática, de linguagem, de muita
coisa, entre os dois filmes.
São dois flashes da luta pelo território
urbano de uma grande cidade, onde os senhores feudais de outros tempos não mandam
mais em ninguém. Como sempre, só manda quem consegue se impor. O conflito
imobiliário em nossas cidades não é menor que o conflito fundiário no campo.
O bairro é outro, mas a vizinhança é do
mesmo tipo. O rapaz de moto que vende pó atrás do quiosque perto do edifício Aquarius
lembra o neto de W. J. Solha, no outro filme, um playboy mimado que praticava
pequenos furtos. Irandhir Santos fez um segurança e agora faz um salvavidas.
Há um paralelismo nessa presença discreta,
mas contínua, de uma rede de pessoas secundárias, de vizinhanças, de compadrio,
troca de favores, pequenos serviços, lealdades e amizades momentâneas. Aquele casulo
de compromissos e de expectativas que mantém um morador em conexão com um lugar.
No Som...,
um cara mal tratado por uma madame risca-lhe o carro com um prego quando ela se
prepara para ir embora; em Aquarius,
dois caras que ela reconhecia e tratava pelo nome surgem do nada e por lealdade
colocam em sua mão uma pista.
A promiscuidade entre as classes sociais em
Boa Viagem deve ser algo inimaginável para a família de Lord Grantham em Downton Abbey, mas certas leis da
existência estão sempre valendo. “Dize-me quem te serve ou a quem serves, e eu
te direi quem és.”
Todo mundo tem um papel social muito
rígido para desempenhar. “You gotta serve somebody.” Clara e sua empregada Ladjane
levam essa relação com leveza. Em certos momentos são apenas duas mulheres que se
aproximam uma da outra, que precisam da presença da outra para encarar
situações.
Você e um empregado (ou um amigo) podem
ter quatrocentos anos de casa grande e de senzala, respectivamente, e saber que
isso é diluível em tempo. O tempo até agora foi pouco. Patrões e criados nesses
filmes de Kleber se confrontam, se relacionam, em tons diferentes, mas de modo
sempre plausível. E todos se assemelham na busca constante de segurança
territorial: o meu canto, o meu lugarzinho, o meu cafofo, o meu QG, o meu
ponto-castañeda, o meu sanctum, o
zero cartesiano do meu GPS.
Em O
Som..., há uma cena arrepiante que ocorre à noite. Vemos do alto, por uma
janela, um pátio interno, plantas, um muro. De repente um vulto humano, escuro,
surge na sombra em cima do muro. Pula para dentro e corre a se esconder fora do
ângulo de visão. Logo surge um segundo, diferente, mas fazendo a mesma coisa. E
um terceiro, e um quarto, e assim surge do nada uma invasão silenciosa de
vultos ariscos como ninjas.
Lembra o famoso episódio de Conan Doyle
sobre o castelo de Villefranche, que hospeda alguns cavaleiros afamados e é
sorrateiramente invadido à noite por camponeses amotinados e famintos (A Companhia Branca, 1891).
É o medo atávico de ver vultos obscuros invadindo
nosso santuário na calada da noite. Os zumbis. Os vampiros. Os sem-teto. Os
sem-escolha. Os sem-alma. Pode ser um arrastão noturno rebatando tudo, na
mão-grande. Pode ser uma carta de intimação de uma construtora, com palavras
como “nossa oferta final” ou algo que faça o mesmo efeito.
Visto por esse ângulo da expulsão do paraíso,
o filme de Kleber é o contrário da passividade de "Casa Tomada” (1946), o
conto famoso de Julio Cortázar, onde os remanescentes da família aceitam que a
casa lhes está sendo tomada aos poucos, aposento por aposento, andar por andar,
até que eles próprios vão embora e trancam por fora a porta da frente. Sabem, e
não comentam, que o mundo não lhes pertence mais. Como o próprio Cortázar na
época, admitindo que a Argentina não era mais sua e indo viver na França.
Mas o movimento de tomada do espaço urbano
acontece sempre em mão dupla.
O filme de Kleber Mendonça capta o
espírito do ano do movimento “Ocupa Estelita” no Recife e das ocupações de
escolas secundaristas em São Paulo. É um choque historicamente inevitável
diante da brutalidade das ocupações “gentrificadoras” do espaço urbano.
O coronel-patriarca-bíblico interpretado
por W. J. Solha em O Som ao Redor
pertence a uma linhagem de nobres que podem ser canavieiros, do gado, do algodão.
(Hoje devem ser do mercado financeiro, fazendeiros do ar, que plantam zeros
para colher percentagens.)
Foi talvez pensando na segurança
financeira do futuro Coronel Francisco que em tempos remotos algum antepassado
seu irrompeu, impudente e conquistador, na topografia urbana do Recife,
comprando o que seriam depois quarteirões inteiros, com o destemor de quem nada
à noite num mar assombrado por tubarões.
Nota nada mais que curiosa, Bráulio: você diz que Aquarius é o reverso de A Casa Tomada, de Cortázar. Não sei se você sabe, mas o Marcus Vilar tem um curta feito em cima desse conto, filmado na casa da fazenda Boisó, Eu e a Eleonora Montenegros somos os irmãos que acabam abandonando o casarão invadido ninguém sabe pelo que.
ResponderExcluirSolha, como vê, você posta aqui como "anônimo", mas eu o identifiquei porque vi, sim, o filme de Marcus, do qual gostei muito. Acho que foi teu segundo trabalho como ator que vi na tela, após "Fogo".
ResponderExcluirFiquei triste por você não ver (ou pelo menos não relatou) semelhança com o momento político no Brasil: o poder econômico tomando o poder.
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