domingo, 4 de setembro de 2016

4154) "Aquarius", o filme (4.9.2016)




(ilustração: Toinho Castro)


Um dos temas que correm ao longo do filme de Kleber Mendonça Filho é um confronto entre modo-de-ver analógico e modo-de-ver digital, a partir da entrevista inicial de Clara a duas jornalistas. Clara se dá bem com todos. Passa músicas em pendraive, coleciona vinis, publicou entre outras obras um livro sobre Villa-Lobos. Ela mostra a raridade de um vinil, que vem com um recorte de jornal dentro, uma matéria sobre John Lennon.

Tudo pode ser analógico ou digital, e por enquanto é perda de tempo inventar pretextos para abrir mão de um dos dois. Não precisa.

Você precisa de uma informação exata mas obscura. É 2016, e você vasculha um arquivo kafkeano de pastas de plástico e caixas de papelão. Ali deve ter uma nuvem de poeira e ácaros que se for espalhada dá pra cobrir o bairro. Mas o analógico tem a sobrevida do material em que é registrado, e está tudo lá. A informação é encontrada.

E noutra situação você precisa da leveza e instantaneidade do equipamento digital para filmar de improviso, em condições antagonísticas, para registrar o espanto, o choque, a fúria balbuciante de quem pisou numa armadilha pontiaguda da própria esperteza. Celular apontado ao vivo, quem sabe transmitindo direto não só para uma audiência, mas deixando uma cópia de tudo. Isso, só a imagem digital pode.

Somos (eu sou da geração de Clara) pessoas analógicas num mundo cada vez mais digital, mas não é isso que rejeitamos nesse mundo. Rejeitamos, quando é o caso, uma certa falta-de-passado que esse mundo tem, porque às vezes temos a impressão de que a foto digital, o selfie, o instagram, existe apenas para ser visto por alguns segundos, “curtido”, e esquecido para sempre.

O instante, o momento, a faísca do presente, tudo isto é sagrado, e aí estão o haikai, o repente e o I-Ching. Mas veja-se que todas essas girândolas em honra do presente foram feitos com a pólvora de muitas gerações, de tradições inteiras. Porque o instante só vale se houver, no instante em que o vemos, um passado todo, inteiro como uma pedra.

A família de Clara gosta de curtir imagens, de comentar fotos antigas, de puxar fios de gente enganchados na memória. A imagem puxando a história. Uma imagem parada põe uma história em movimento. Histórias da sua vida e outras. Momentos de reencontro e armistício entre as gerações. Pessoas que se gostam, mas que divergem, assoprando as brasas do afeto. Clara nem é um modelo de mãe nem uma desorientada. Ganhou um certo desdém pela vagarosidade mental alheia, mas deve ter sido mais pelas barras que passou do que por qualquer esnobismo de origem.

Clara vive bem, ali, e vive de rendas. Afirma ter outros imóveis, mas aquele é o lugar onde ela gosta de viver. A família, claro, é sempre a última que leva isso a sério. Qualquer grande agente imobiliário pode contar a meia-voz histórias de divisões de espólio que deixariam Agatha Christe ocupada por uns cem anos.

Clara não quer ser ameaçada, nem incomodada por surubas ao som de um pancadão. Ela se surpreende a saltar da cama no meio da noite e correr para trancar por dentro a porta da frente. Clara já sabe que cada fase da vida é uma guerra diferente, e o choque que a atinge em pleno peito é uma bomba de efeito moral. Ninguém quer destruí-la, apenas removê-la.  

O mundo onde eu mandava está sumindo pouco a pouco, pensa cada um deles ou delas. Mas dali ninguém os tira. E mesmo que a gente não veja a intelectual de Boa Viagem e os nobres de Downton Abbey com a hipotética simpatia com que vemos o sem-teto Adoniran Barbosa e seus comparsas, Mato Grosso e o Joca, não podemos negar que todos têm motivos mais do que concretos para fincar o pé naquele canto. Não faríamos o mesmo?!

Uma série formalmente conservadora e tradicional como Downton Abbey nem por isso deixa de mostrar com certo distanciamento e humor os comportamentos absurdos de nobres e de criados no tempo em que se vivia em conjunto a fantasia que podemos chamar de “a Persuasão Aristocrática”, a noção de que os nobres eram seres superiores e deviam ser tratados como pessoas infinitamente preciosas pois cada minuto de suas vidas era indescritivelmente importante.

O nobre verdadeiro perde o castelo mas não perde a nobreza. É um patrimônio histórico de grande beleza, mas por alguma razão está se esboroando.

O que une mesmo os personagens do filme de Kleber e da série de Julian Fellowes nem é a posse de uma edificação de pedras e argamassa, é a continuidade afetiva de um passado. O apartamento de Clara é uma reprodução em 3-D de cada momento vivido ali, com os parentes mais velhos que já se foram, a história dos amores, das trepadas, dos dramas, dos perigos, das canções, dos filhos criados, das mortes e das sobrevivências. Deixar aquela casa será como deixar aquele corpo. Ela sabe que um dia vai acontecer.

(continua)








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