Comemorar, às vezes, implica em reler. Estamos comemorando os 70 anos de publicação de Sagarana (1946) de Guimarães Rosa. Tem alguns contos aí que eu sei quase de cor, mas tem outros que eu não lia há um tempão. Peguei para reler “O Burrinho Pedrês”, um antigo favorito. Me lembro com dez anos de idade decifrando aquilo e me maravilhando com frases tipo:
“...uma umidade de melar por dentro das roupas da gente”...
“seus mugidos começando por um ême e prolongando-se em rangidos de porteira velha.”
“Para ser um dia de chuva, só faltava mesmo que caísse água”...
E a melodia ritmada das descrições, prosa em anfibráquicos:
Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos, chumbados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do mocho macheado, e as armas antigas do boi cornalão...
Versos de galope beira-mar, células de prosa rítmica que se
encaixam com perfeição numa cadência poética famosa. Esse trecho meio que
funciona como a descrição da boiada passando, quatrocentas e sessenta cabeças
que estão sendo conduzidas para serem embarcadas no trem, a não sei quantas
léguas dali. É a partida épica da dúzia de vaqueiros em seus cavalos (e um
montado no burrinho) tocando o berrante, botando a boiada no campo aberto,
recitando, aboiando, tirando verso enquanto agita o chapéu de couro:
O Curvelo vale um conto,
Cordisburgo um conto e cem.
Mas as Lages não têm preço,
porque lá mora o meu bem...
É o grande momento musical do conto, essa partida da
boiada. Lembra a cena famosa de Howard Hawks num filme como Red River (1948).
Além dos aboios prolongados (“Ê-ê-ê-ê-ê, boi...”), os vaqueiros trocam quadras
entre si, e o conto, que até então tinha sido mais descritivo, passa a ser mais
narrativo, porque os vaqueiros começam a contar histórias. E assim vão encurtando a estrada.
“O Burrinho Pedrês” é a história de uma ida e uma volta, as
duas muito diferentes entre si, porque na volta ocorre uma reviravolta. Isso
lembra a expressão semelhante e cara a Ariano Suassuna, “o Reino do
Vai-e-Volta”. Ir e voltar é uma boa metáfora para os saltos da memória de
Quaderna entre o presente e o passado.
E lembra sem dúvida a expressão famosa no romance O Hobbit:
“There, and back again”. “Ir até lá, voltar para aqui.”
A comparação não é gratuita, porque o livro de Rosa se abre
com duas epígrafes. Uma é uma quadrinha de desafio; a outra, este trecho cuja
origem ele indica em “Grey Fox, estória para meninos”:
“For a walk and back again, said the fox. “Will you come with me? I’ll take you on my back. For a walk and back again”. “Dar uma volta e voltar, disse a raposa. Quer vir comigo? Eu levo você nas costas. Dar uma volta e voltar.”
Durante a ida, os vaqueiros vão lembrando episódios
pitorescos ou dolorosos do passado. Como se fossem marinheiros no convés de uma
fragata ou soldados numa trégua na trincheira, os vaqueiros fazem um
toma-lá-dá-cá de histórias passadas, e assim a longa viagem de ida vai ser
estirando. E tem sempre um coitado a quem acaba cabendo por montaria o
burrinho, como opção derradeira, por ordem do Major Saulo, o incansável patrão.
O burrinho, Sete de Ouros, é uma espécie de cursor da estória, que sempre volta
a ele, depois de passear por todo aquele alvoroço.
É curioso que apesar do linguajar folgazão dos vaqueiros
as histórias contadas nesse trecho da aventura, essa ida com pequenos atrasos
mas sem grande atropelo, são histórias de difíceis confrontos, de vidas e de
boiadas perdidas, de conflitos brutos entre homens e animais. Um conta, os
outros comentam.
Enquanto isto, atravessam com alguma dificuldade o rio da
Fome, que está encorpando devido a chuvas fortes na cabeceiras. Os vaqueiros
conseguem passar tudo sem perder nem uma rês. Logo estão na cidade, na estação
do trem, e o embarque “durou mais de hora e meia”. Os vaqueiros, desincumbidos,
vão encher a cara até de noite.
E então começa a volta. Vêm mais histórias tristes, de
morte, de perda. São agora somente os vaqueiros e suas montarias, burrinho
inclusive. E quando querem atravessar de volta o rio da Fome, percebem que nas
últimas horas o rio aumentou muito de tamanho. Já é noite. Eles entram na
correnteza, mas ela está muito mais forte do que horas atrás. O final é trágico
para muitos, mas não para seu herói, o burro Sete de Ouros.
Relendo o conto notei uma semelhança com um dos meus
preferidos, “O Recado do Morro” (em Corpo de Baile, 1956), sobre o qual
já escrevi em A Pulp Fiction de Guimarães Rosa (João Pessoa, Marca de
Fantasia, 2008). Assim como o grupo de vaqueiros conduz a história no conto do
burrinho, no “Recado” o início da história acompanha a partida de um grupo de
viajantes (um cientista, um dono de terras, etc.), cujo guia é Pedro Orósio,
uma espécie de Schwarzenegger sertanejo, capaz de carregar um boi nos braços.
Ao longo da viagem, um doido que os acompanha julga ter ouvido o Morro da Garça
lhe gritar alguma coisa ao longe, quando passaram ao largo dele, no horizonte.
As frases sem nexo que ele brada são decoradas e repetidas ao longo da viagem
por outras pessoas, cada qual querendo passar adiante uma história que não
ouviu bem nem entendeu direito. De ruído em ruído o recado vai se modificando.
O grupo percorre várias localidades e fazendas, e depois
retorna. Nesse retorno, é um dia de festa no lugarejo, e, como os vaqueiros do
outro conto, vão tomar umas cachaças noite adentro para descarregar a tensão. E
ali Pedro Orósio escuta a versão mais recente do recado ouvido pelo doido, cujo
teor ele sabia, só que agora em forma de canção pelo violeiro local, com versos
que falam de um rei combatendo sozinho contra sete cavaleiros. Pouco mais
adiante há uma batalha campal onde quase todo mundo se dá mal, mas Pedro Orósio
escapa ileso e triunfante.
É mais ou menos este o esquema de ambos os contos: uma ida
longa, horizontal, cheia de episodiozinhos incrustados, e uma volta curta,
plena de ação e de tragédia. Não creio que seja planejado. Nota-se que é uma
sucessão de peripécias que diz muito ao autor, emocionalmente, e ele extrai de
cada uma delas efeitos literários muito diferentes. Guimarães Rosa era um
desses autores que “escrevem com o corpo todo”, empolgam-se, entregam-se.
Autores assim tendem a repetir estruturas profundas, porque são aquelas
histórias que por variados motivos se incrustaram na sua memória afetiva, são
aquelas situações que vivem lhe pedindo para ser recontadas. E anos depois o
cara as reconta, com outro enredo, outros personagens, outras situações.
Escrever é sempre ir e voltar.
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