quinta-feira, 18 de junho de 2015

3843) Jazz, FC e cantoria (18.6.2015)






O jazz talvez venha a ser visto um dia como a música que melhor refletiu o século 20. (Não, não é o rock. O rock só cobriu a segunda metade do século.)  

O jazz é visto como a música do improviso, mas todo ano se gasta, na indústria editorial, um Rio Negro de tinta para descobrir e glosar novas sutilezas suas. Geoff Dyer, num artigo de 1991 (em The Picador Book of Blues and Jazz, 1995) examina uma hipótese de George Steiner, de que toda a crítica de artes e de literatura deixasse de existir. Haveria apenas a justaposição entre artista e público, sem explicadores, sem intermediários. Um “ozônio de comentários”, diz Dyer, sugerindo que a crítica é uma camada protetora cuja ausência fosse talvez perigosa demais para a arte.



Mas logo adiante ele lembra que para o próprio Steiner a própria arte é a melhor reflexão sobre a arte. Dyer transpõe as referências clássicas de Steiner para o jazz, onde, segundo ele, cada performance, cada fonograma, é ao mesmo tempo criação musical e crítica da música que veio antes. 

No jazz, diz Dyer, “se traçássemos linhas ligando todas as canções disponíveis num diagrama assinalando todas as homenagens e tributos, logo o papel se tornaria impenetravelmente preto, e o sentido do diagrama seria eclipsado pela quantidade de informação que precisaríamos registrar”.



Essa reflexão pode ser aplicada a muitas formas de arte além da música clássica e do jazz. Ela é especialmente aplicável a duas artes com que tenho certa familiaridade: a ficção científica e a cantoria de viola. Dois universos onde todo mundo que cria já leu todo mundo que criou, formando uma imensa teia de citações, homenagens, paródias, paráfrases, glosas, variantes, universos-compartilhados, sequelas e prequelas, alusões, influências. 

É difícil um autor significativo de FC que em qualquer momento não esteja reciclando e renovando idéias de Wells, de Clarke, etc; idem um cantador de viola que volta e meia não lance mão de temas ou de recursos estruturais vistos pela primeira vez nos versos de Romano do Teixeira, de Pinto do Monteiro, de Vila Nova, etc.


Espírito imitativo ou fervente caldeirão cultural? Fico com a segunda. Para quem é escritor de verdade (músico, cineasta, repentista, etc) a arte em si é o oxigênio. Poeta que passa 24 horas seguidas sem pensar em poesia cai torrado por um raio. Daí que quando o talento individual aparece todo mundo vê logo, porque críticos, leitores, apologistas, editores, todos compartilham o mesmo Banco de Dados Universal, todos são astrônomos que conhecem de cor cada espaço ocupado ou vazio daquele céu, e todos veem ao mesmo tempo a explosão de cada Nova.




2 comentários:

  1. É isso aí, Braulio. Seja lá o que cada cara crie, interlocutores ninguém pode inventar. Todo criador, mesmo afastado dos demais (por época/geografia/idiossincrasia), mesmo sem intercâmbio nenhum, todos os outros são seus interlocutores. Basta ler/ouvir/ver obra alheia e algum diálogo interior brota, alguma influência insabida se instala, insights e clics surgem. Somos, cada um, um poço de um único e gigantesco manancial, a usufruir e refluir o recebido. Todos jorramos as matérias das quais dependem as artes. Belezura de txt. Abração.

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  2. Caríssimo,

    O crítico de "arte" como hoje entendemos é um profissional da opinião (citando o Rosa: "pão ou pães é questão de opiniães") e tal opinião é, no máximo, uma referência. Quando não somos músicos (compositores ou intérpretes) a opinião do crítico pode ser um ponto de partida para uma escolha (ainda) pessoal. E para o músico? Talvez seja mais alguém que gostou ou não da sua música e nunca um juízo de valor (falo como músico).
    Seria uma tarefa hercúlea fazer música conscientemente com base no que foi feito. Fazer uma música sempre "nova" é tarefa de matemático não de músico. Como toda expressão artística (pois "toda arte é inútil") ela é fruto do zeitgeist servindo-se do inconsciente coletivo musical. Essa abordagem me parece ser mais plausível.

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