Eu sou aquele cara preguiçoso que, numa noite de inverno,
está lendo na cama, todo enrolado nos edredons.
Na hora de dormir, ele precisa levantar e ir até a parede do quarto para
desligar a luz, mas o frio o impede. Uma noite ele joga o chinelo e acerta o
interruptor, apagando a luz. E desse dia em diante a hora de dormir se
transforma num campeonato-contra-si-mesmo, em que ele arremessa chinelos,
livros, travesseiros, tudo que tiver à mão, até que lá pela décima-quinta
tentativa consegue acertar o interruptor e apagar a luz.
Eu sou aquele velhinho que no sábado manda comprar um saco
de milho e no domingo pede para ser levado à praça pela manhã, para dar milho
aos pombos; e que no domingo em que por algum motivo não pode ir, fica tendo
palpitações porque acha que os pombos vão sentir sua falta.
Eu sou aquele troll rancoroso que passa o dia inteiro
pulando de saite em saite e insultando pessoas que não conhece, a respeito de
assuntos que não entende, e quando sai do computador começa a chutar a mobília,
machuca o dedo do pé e fica pulando num pé só e gemendo de dor no meio da sala
e berrando “vocês vão ver uma coisa, vocês vão ver!”.
Eu sou aquela noivinha cansada de pensar no futuro, e que
acha que a penúltima coisa da vida dela vai ser o casamento e a última vai ser
a viagem de lua de mel, e que depois disso vai ser uma imagem congelada de um
beijo e uma música de violinos tocando em loop até o final dos tempos.
Eu sou o taxista que pega um passageiro à noite para uma
corrida longa, pergunta a ele de onde é aquele sotaque, recebe a resposta, diz
que já morou lá, o passageiro pergunta o que ele fazia, ele diz que jogava
futebol, o passageiro manda acender a luz interna do táxi, ele acende, o
passageiro olha a cara dele e diz: “Adroaldo, lateral-esquerdo do Juventus!”, e
ele grita: “Está paga a corrida!”.
Eu sou aquele cara que acorda no meio da noite silenciosa,
aterrorizado, lembrando que pediu emprestado a um amigo um captador de violão
caríssimo, 28 anos atrás, e agora não lembra mais se devolveu ou não.
Eu sou a dona de casa que desenvolveu um sistema memorizador
de todas as coisas da casa, por ordem alfabética, e antes de dormir vai
repassando todas, uma por uma, enquanto discute com o marido fleumático que
fala, “minha filha, vem te deitar, aproveita que eu tou novo ainda”.
Uau!
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