quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

3699) Quem sou eu? (1.1.2015)



Eu sou aquele cara preguiçoso que, numa noite de inverno, está lendo na cama, todo enrolado nos edredons.  Na hora de dormir, ele precisa levantar e ir até a parede do quarto para desligar a luz, mas o frio o impede. Uma noite ele joga o chinelo e acerta o interruptor, apagando a luz. E desse dia em diante a hora de dormir se transforma num campeonato-contra-si-mesmo, em que ele arremessa chinelos, livros, travesseiros, tudo que tiver à mão, até que lá pela décima-quinta tentativa consegue acertar o interruptor e apagar a luz.

Eu sou aquele velhinho que no sábado manda comprar um saco de milho e no domingo pede para ser levado à praça pela manhã, para dar milho aos pombos; e que no domingo em que por algum motivo não pode ir, fica tendo palpitações porque acha que os pombos vão sentir sua falta.

Eu sou aquele troll rancoroso que passa o dia inteiro pulando de saite em saite e insultando pessoas que não conhece, a respeito de assuntos que não entende, e quando sai do computador começa a chutar a mobília, machuca o dedo do pé e fica pulando num pé só e gemendo de dor no meio da sala e berrando “vocês vão ver uma coisa, vocês vão ver!”.

Eu sou aquela noivinha cansada de pensar no futuro, e que acha que a penúltima coisa da vida dela vai ser o casamento e a última vai ser a viagem de lua de mel, e que depois disso vai ser uma imagem congelada de um beijo e uma música de violinos tocando em loop até o final dos tempos.

Eu sou o taxista que pega um passageiro à noite para uma corrida longa, pergunta a ele de onde é aquele sotaque, recebe a resposta, diz que já morou lá, o passageiro pergunta o que ele fazia, ele diz que jogava futebol, o passageiro manda acender a luz interna do táxi, ele acende, o passageiro olha a cara dele e diz: “Adroaldo, lateral-esquerdo do Juventus!”, e ele grita: “Está paga a corrida!”.

Eu sou aquele cara que acorda no meio da noite silenciosa, aterrorizado, lembrando que pediu emprestado a um amigo um captador de violão caríssimo, 28 anos atrás, e agora não lembra mais se devolveu ou não.

Eu sou a dona de casa que desenvolveu um sistema memorizador de todas as coisas da casa, por ordem alfabética, e antes de dormir vai repassando todas, uma por uma, enquanto discute com o marido fleumático que fala, “minha filha, vem te deitar, aproveita que eu tou novo ainda”.

Eu sou o cara que um dia toma um pileque e vai bater na porta da casa onde morou quando menino, e não consegue explicar à família assustada que quer apenas saber se o carrinho que enterrou no quintal continua a salvo dos ladrões, dos meninos invejosos, da chuva, da ferrugem, do moinho implacável do Tempo.


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