(Ray Bradbury, por Selin Arisoy)
Em 1979, no posfácio de uma reedição de Fahrenheit 451,
Ray Bradbury escreveu: “Cinco anos atrás, os editores de uma antologia para
estudantes lançaram um volume contendo 400 contos. Isso mesmo, quatrocentos.
Como se faz para colocar 400 histórias de Mark Twain, Poe, Irving, Maupassant e
Bierce num único volume? É a coisa mais simples do mundo. Esfole. Esquarteje.
Extraia a medula. Retalhe, derreta, corte e destrua. Cada adjetivo que conta,
cada verbo que comove, cada metáfora que pese mais do que um mosquito –
fora! Cada comparação que possa fazer
mover os lábios de um sub-retardado – fora! Cada digressão que possa explicar
em duas linhas a visão filosófica de um autor de primeira classe – fora!
“Cada história – adelgaçada, definhada, censurada,
sanguessugada até a derradeira palidez – estava igualzinha a qualquer outra. O
estilo de Twain estava igual ao de Poe que estava igual ao de Shakespeare que
estava igual a Dostoiévski que estava igual – no fim das contas – a Edgar
Guest. Cada palavra com mais de três
sílabas tinha sido cortada a navalha. Cada imagem que exigisse mais do que um
instante de atenção tinha sido fuzilada a queima-roupa”.
Bradbury era um escritor de estilo exuberante, florido,
repleto de imagens, de símiles, com um vocabulário transbordante. Para ele, tirar essas palavras em benefício
da mera compreensão da história era uma deformação imperdoável. Para autores
assim, as palavras não são um mero veículo para idéias, elas são criaturas em
si mesmas. Afinal, uma palavra também é um ser humano.
Por outro lado, o mercado editorial precisa atrair pessoas
de escolaridade sacrificada e difícil. É preciso dispor de uma boa variedade de
textos que não afugentem esse leitor limitado logo na página 1. Numa cultura literária pomposa e hipócrita
como a nossa, em que “saber palavras difíceis” é considerado uma prova de
inteligência, vocabulário se torna proporcional a status. Nossos beletristas gostam de se pavonear com
penas de vocabulário. Não é o caso, por exemplo, de Bradbury, que mesmo sendo
um autor às vezes meio auto-indulgente com os próprios cacoetes, está
defendendo uma visão que acho correta.
Acabo de ler Fahrenheit 451, saí da leitura bem decepcionado, trechos muito extensos do livro são apenas perseguição, a justificativa do banimento dos livros não é sustentável, um bombeiro vilão com verborragia de literatura B, e o que é aquele cão robô? No fim do livro o autor diz que pensava estar escrevendo um "livro barato" – e eu pensei o mesmo – e que alugava uma máquina de escrever por meia hora, o que o obrigava a terminar rapidamente o texto. Então a vitalidade da história aparentemente o surpreendeu, e mudou seu conceito a respeito da própria criatura, mas a mim não justifica figurar um triunvirato distópico ao lado de Huxley e Orwell.
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