Gilberto Freyre, um dos mais dedicados investigadores da
sociedade pernambucana, intitulou seu primeiro grande livro Casa Grande &
Senzala, criando com isto, aliás, uma terminologia que se incorporou a nossa
linguagem cotidiana (“O Brasil pode até acabar com a senzala, mas nunca vai se
livrar da casa grande”, etc.). Voltando sua mira para o meio urbano, Freyre
produziu outro dístico que equaciona em outros termos essa clivagem social: Sobrados e Mucambos. Eu diria que a cultura pernambucana (principalmente
cinema, literatura, música) vem nos últimos tempos produzindo um terceiro corte
que na falta de coisa melhor eu chamaria Cobertura Duplex & Moradia
Popular.
O filme O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho faz esse
corte transversal numa pequena área urbana do Recife. É um terreno vasto de
patriarcas do açúcar que, como tudo o mais que foi deles, acabou fatiado,
loteado aos pouquinhos. Um império vendendo a si mesmo pelas beiradas, como
naquela fábula do náufrago que todo dia cortava um pedaço de si mesmo e o
jogava aos tubarões, na esperança de que poupassem o principal. No filme, os
tubarões quase não são vistos, mas as grades que os mantêm do lado de fora são
onipresentes. Todo enquadramento do filme lembra uma palavras-cruzadas. É tanta
grade que parece que estamos em Abreu e Lima, não num bairro nobre.
Nobre é o tratamento que esses fidalgos-de-berço dão aos
serviçais, quando em condições normais de temperatura e pressão. Certos
retratos da aristocracia rural inspirados em histórias de chicotes e feitores
ignoram essa maneira tranquila, civil, até descontraída com que os ricos
nordestinos (o filme mostra) costumam tratar seus empregados. Quem grita e
esculhamba com eles, em geral, são os patrões de classe média.
No labirinto das ruas floresce o mercado-negro da segurança
privada, uma guarda-pretoriana a que os combalidos aristocratas entregam seu
destino, meio que fechando os olhos a todas as evidências. Jovens ricos vivem
de pequenos furtos ou se engajam como pequenos mascates da explosão
imobiliária. O velho patriarca (W. J. Solha, bíblico e jagunço) é afável e
bonachão, mas, quando prevê uma ameaça a um parente seu, racha-se o verniz, e a
escama do dragão reponta, fumega.
Excelente reflexão sobre o filme!
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