segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

3370) Peço perdão (15.12.2013)




Peço perdão por ter sido o único sobrevivente do massacre em que 200 soldados da volante exterminaram 17 cangaceiros indefesos, ou foram 200 cangaceiros que massacraram 17 soldados, a esta altura a guerra de contrainformação já dissipou os fatos. Peço perdão por ter me dado um branco e eu esquecido o nome do quinto filho de um rei do Império Otomano, pergunta que na prova oral minha professora preferida puxou da algibeira, certa de que eu tinha a resposta na ponta da língua, e ficou surpresa com a minha demora em produzir o nome instantâneo esperado, limitando-se a pigarrear em incentivo e limpar os óculos com uma flanelinha amarela de bordas serrilhadas ostentando o logotipo da ótica, enquanto eu gaguejava tartamudo uma contemporização qualquer e a classe inteira fazia um zunzum trocando cotoveladas discretas e comemorando: “Ele também erra!”.

Peço perdão pelo verso flácido, por aquele vacilo no contratempo, pela semitonação reiterada das minhas cordas de aço, por aquele agudo que se pretendia clímax triunfal e redundou numa refração auditiva capaz de rachar mil tabocas. Peço perdão pela gorjeta que foi só 10%, quando eu sei que esperava mais, nossa-amizade, mas a cerveja demorou, o petisco veio mal aquecido, e só vou pagar o mínimo previsto em lei. Peço perdão pelos crimes dos assírios e caldeus – vou por ordem cronológica até chegar nos meus. Peço perdão por ter deixado a van bloqueando o acesso dos bombeiros e das equipes de resgate, mas eu não poderia tê-la estacionado em outro lugar, visto que fui o autor do atentado. Peço perdão pelos meus solecismos, e os peço em dobro caso você não saiba o que quer dizer esta excelente palavra.

Peço perdão a Deus por imaginá-lo um Vazio, e por garantia peço perdão ao Vazio por ofendê-lo com essa contra-hipótese anacrônica. Peço-te perdão por não ter naquela festa criado coragem e dito um galanteio banal que demonstrasse minhas intenções, algo como “esse seu vestido tá tão bonito que dá vontade de tirá-lo às pressas”, para que você enrubescesse de pronto nos pontos-chave, mas, percebendo as orelhas-em-pé das fofoqueiras infiltradas, mexesse nos talheres enquanto erguia a voz para um bem audível “engraçadinho, você...”. Peço perdão por não ter tido a suprema gentileza do alvo que fasta um pouquinho e oferece a mosca para que a seta não se perca. Peço perdão aos ofendidos, aos prejudicados, aos insatisfeitos, aos indiferentes, e isso nada me custa, porque pedir perdão não é esperar esse perdão alheio que nunca vem mesmo, vamos admitir, pedir perdão é passar álcool na ferida, porque dói mas cura, e mesmo quando não cura pelo menos dói, e só dói em quem escapou.



3369) Tejo e Zé Limeira (14.12.2013)





(Orlando Tejo, por Rodrigo)



Está disponível no YouTube (http://bit.ly/IFR927) o documentário da TV Senado, dirigido por Maurício Melo Jr., O Homem Que Viu Zé Limeira, sobre o poeta Orlando Tejo e o seu famoso personagem. 

Zé Limeira é um personagem épico, no sentido de ser alguém que provavelmente teve existência física mas acabou recebendo uma estatura mitológica. Virou um agregador de lendas, um atrator da imaginação alheia. 

O cantador de Tauá tornou-se assim por obra e graça de Orlando Tejo e seu livro Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, um dos livros clássicos sobre a Cantoria de Viola, além de sobre Campina Grande e a Paraíba inteira.

Em princípios dos anos 1970, mais ou menos, Orlando Tejo decidiu-se a colocar no papel as histórias que sabia sobre Zé Limeira, que era um negro alto, de voz poderosa, e tinha um carisma peculiar onde se misturavam a simpatia, uma certa ingenuidade ou primitivismo (consta que ele tinha medo de trem de ferro) e uma capacidade inesgotável para fazer versos sem pé nem cabeça.

Toda cultura tem seu capítulo de nonsense, e muita gente já registrou, aqui mesmo no Nordeste, a presença de poetas que dão 100% de atenção ao som e zero ao sentido. Poetas que vivem para a métrica e a rima, sem dar a menor bola para o que estão dizendo. 

Zé Limeira tornou-se tão famoso, devido ao livro de Tejo, que hoje certamente muitos versos absurdos de outros poetas são transferidos para ele. Isso sem falar nos versos (esta questão é debatida no filme) que teriam sido escritos por Otacílio Batista e outros amigos de Tejo, depois que este se preocupou com a pequena quantidade de versos autênticos que teria recolhido.

Poeta contando história, os versos que achou são poucos? Não tem problema, qualquer um faz mais. Não é tão difícil, havendo um tal precedente. 

Quando eu fazia parte da Comissão de Seleção do Congresso Nacional de Violeiros, em Campina, incluí o mote “Se eu quiser eu também faço / igualzinho a Zé Limeira”, que é glosado até hoje, e aparece também no filme. 

Zé Limeira virou um estilo, pouco importa a pessoa.

O filme entrevista inúmeros poetas e fãs da cantoria (eu inclusive), mas devemos tirar um chapéu especial para Vladimir Carvalho. Deve-se a ele, e a sua mania de filmar tudo, a presença viva de Orlando Tejo neste documentário: falando, rindo, recitando, descrevendo Zé Limeira em detalhes, cantando sambas. (Eu conheço Tejo há quase 50 anos e nunca o tinha visto tocando violão.) 

Boêmio, gozador, improvisador fino, gente boa até a medula, Orlando Tejo deveria ter sua obra poética esparsa reunida em livro, e se isto acontecer um dia talvez ele acabe se tornando mais famoso do que sua mais famosa criação.