(foto: J. Henri Lartigue)
“Mãe morreu hoje. Ou pode ter sido ontem, sei lá.”
É assim que eu traduziria, usando meu estilo pessoal de discurso, o famoso
começo do romance O Estrangeiro de Albert Camus. Seria assim que o personagem
do livro diria essas frases, se fosse eu. Claro que isso não vale para uma
tradução literária, porque esta se destina ao público, e o tradutor não está
ali para colocar seu discurso pessoal (sua forma espontânea de usar as
palavras) à frente do discurso do personagem, do discurso do autor. Ele está a
serviço de ambos.
Uma nova tradução em inglês do romance, de
Sandra Smith, provocou discussões interessantes em The Guardian (aqui: http://bit.ly/1d3haBL),
em que a tradutora, os jornalistas e os leitores comparam diferentes
enunciações dessa frase. Não é uma discussão estéril, porque grande parte do
encanto do livro reside na voz distanciada, alienada do narrador Meursault, um
cara que se envolve nos acontecimentos como se não os entendesse por completo:
a mãe morre, ele mata um homem, é condenado à morte, e o tempo todo descreve
aquilo como se não fosse com ele.
Preservar esse tom embotado, não-envolvido, é essencial para o livro, e
o tradutor deve se esforçar para mantê-lo.
Smith comenta que a frase original francesa
(“Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas.”) tem sido
traduzida de modo diferente por cada tradutor. Ela escolheu dizer: “My mother
died today”, invertendo a ordem do original. Por que? Diz ela: “No francês, a
ênfase vem muitas vezes no final da frase, quando em inglês é no começo. Achei
que dizer ‘Today my mother died’ soaria meio desajeitado e não teria o mesmo
peso.” Smith também comenta as
diferentes nuances que a palavra “mãe” tem em cada língua: “Escolhi “minha mãe”
porque pensei em como uma pessoa contaria a outra que a mãe tinha morrido. Meursault está falando diretamente ao leitor.
(...) No resto do livro, usei “mama” porque soa como o “maman”, e também porque
eu tinha consciência de que uma audiência britânica preferiria “Mum” e leitores
americanos diriam “Mom”, e eu precisava de algo que funcionasse dos dois lados
do Atlântico”.
Realmente interessante a quantidade opções. Eu iria de: "Today, mother died. Maybe yesterday, I am not sure."
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