terça-feira, 23 de outubro de 2012

3010) A retórica da FC (23.10.2012)



(ilustração: John Schoenherr)


O fantástico e a ficção científica se baseiam numa retórica em que, como observou Samuel R. Delany, expressões metafóricas são usadas de um modo literal. Na literatura comum, expressões como “voltar ao passado”, “virar bicho”, “ser um morto-vivo”, “atravessar paredes”, “ler o pensamento” são metáforas. No fantástico e na FC, tudo isto acontece ao pé da letra. Ademais, essa retórica especial combina palavras comuns para formar sentidos inesperados, e Delany dá o célebre exemplo da frase de Heinlein: “The door dilated”. A porta se dilatou. O leitor de FC deve ser alguém capaz de imaginar um mundo em que as portas são aberturas na parede que se dilatam e depois se fecham de novo.

Uma imagem como “pistola de raios desintegradores” (anos 1920?) é um produto dessa retórica, concebido numa época em que “pistola” era algo banal, e “raios” eram um aspecto do mundo físico intensamente estudado pela ciência, resultando em descobertas divulgadas pelos jornais (mais do que hoje, aliás). A noção de que raios pudessem desintegrar não era absurda, portanto, e o fato de poderem ser produzidos (por que fonte de energia? com que tipo de controle?) em algo do tamanho de uma pistola era uma conveniência narrativa. A literatura mainstream não dispunha dessas licenças retóricas. Tinha que se restringir ao já existente, ou ao que um dia existira.

Uma vez, escrevendo um conto de FC ambientado em outro planeta, eu quis fazer um personagem, que precisava conversar com uma autoridade qualquer, dizer: “Onde tem uma cabine telefônica?”. Vi logo a bobagem de usar a expressão “cabine telefônica” num futuro cheio de espaçonaves mais velozes do que a luz, e com dezenas de raças (e culturas, e tecnologias) alienígenas. Falei: “Onde tem um emissor de presença?”. E logo o personagem era levado a uma sala escura, e na extremidade oposta aparecia a imagem do escritório do figurão. “Emissor de presença” é uma tecnologia retórica para empregar o mesmo procedimento (comunicação à distância) evitando expressões datadas. “Emissor” tem parentesco linguístico com “transmissor” (que também poderia ter sido usado). E “presença” sugere algo mais que a simples reconstituição sonora da voz – sugere algo como um Skype, que sob diferentes nomes e formas foi um dos primeiros sonhos telecomunicatórios da FC. A retórica da FC nos obriga a descartar as expressões comuns e criar novas combinações de termos (ou mutações das palavras já existentes) para forçar o leitor a, assimilando a palavra ou expressão desconhecida, assimilar o conceito inesperado e novo. Assim surgiram “máquina do tempo”, “ciberespaço”, “andróide”, “steampunk”, etc.


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