quarta-feira, 8 de agosto de 2012

2944) Kishotenketsu (8.8.2012)


(esquema gráfico do Kishotenketsu)


Dizem os manuais de roteiro que toda história se baseia num conflito entre A que deseja uma coisa e B que serve de obstáculo; a narrativa é a descrição das ações de A para suplantar B e obter o que deseja. 

Em geral, as histórias desse tipo têm uma estrutura em três fases, tipo apresentação / conflito / resolução, bem parecida com a famosa tríade marxista do tese / antítese / síntese, e que se baseia, igualmente, na noção de conflito. 

Não nego a importância dessa teoria porque grandes filmes se baseiam nela.  Mas daí a dizer que é a única maneira de contar histórias vai uma longa distância. 

Os japoneses têm uma outra estrutura (chamada “kishotenketsu”) que divide a narrativa em quatro partes.  Estas partes seriam, mais ou menos (cada fonte traduz esses termos de uma maneira diversa): 

1) situação; 
2) intensificação da situação inicial; 
3) um elemento deslocado, “non sequitur”, aparentemente sem nenhuma relação com o que viera antes; 
4) o modo como a situação inicial assimila esse elemento e se transforma.  

Uma nomenclatura diz: Situação, Expansão, Contraste e Resultante. 

Outra os chama de Introdução, Desenvolvimento, Reviravolta e Conclusão.

Um exemplo: 

1) Um garoto chega a um rio. 
2) O garoto tenta em vão apanhar peixes com as mãos.  
3) Noutro local, o vento arranca o chapéu de um homem e o joga no rio. 
4) O menino usa o chapéu para apanhar peixes. 

Note-se que não houve conflito, não houve (como nas histórias ocidentais) um confronto de forças, de vontades, de agressividades nem de espertezas.  

A estrutura oriental mostra a confluência de duas linhas de acontecimentos. A primeira linha ocupa os passos 1 e 2; a outra linha aparece, de forma aparentemente gratuita e inexplicável, no passo 3; e no passo 4 as duas linhas se cruzam com uma resolução satisfatória e inesperada da situação inicial. 

(Ver aqui um bom exemplo e boa teorização: http://bit.ly/Mehp1r).

Essa progressão é usada em quadrinhos, em tirinhas (chamadas “yonkoma”), em poemas, em contos populares, em artigos.  Também em poemas: eis um exemplo poético no verbete inglês da Wikipédia: 

1) Itoya tem duas filhas; 
2) Uma tem 16 anos e a outra 14; 
3) Ao longo da História os guerreiros matavam seus inimigos com arco e flecha; 
4) Mas as filhas de Itoya matam com os olhos.  

A referência aparentemente despropositada no item 3 é explicada no 4: ela serve de metáfora para caracterizar os “olhos matadores” das belas filhas de Itoya.

Existem incontáveis maneiras de estruturar uma narrativa por mais simples ou mais complexa que seja.  Nem toda história é A Jornada do Herói de Campbell; nem tudo está nas receitas-de-ferro dos manuais de roteiro de Syd Field.







9 comentários:

  1. Fico pensando qual é a estrutura que sustenta uma obra de arte como Morangos Silvestres, onde aparentemente não acontece muita coisa, mas sempre toca profundamente.

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  2. Gustavo, faz tempo que vi Morangos Silvestres, não sei como é a estrutura. Mas há um conceito de "plot" ou enredo que eles chamam: "enredo revelatório". São aquelas histórias em que tudo de importante já aconteceu e um personagem está simplesmente recordando os fatos de maneira um pouco aleatória, e revelando-os aos poucos ao leitor. Talvez seja o caso.

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  3. Eu acho que é válido. Principlamente como um treino. Fico imaginando estruturas de fimes como Cidade dos sonhos, Rua dos crocodilos dos irmãos quay e tantos outros, que beira um estado de estranheza e imersão total.

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  4. Braulio, acho que é mais ou menos isso, embora haja no filme de Bergman um fator onírico, onde parte da memória é revelada em sonhos estranhos do personagem, revelando indiretamente seu estado de espírito e seus flagelos internos.

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  5. Braulio, duas coisas:

    1. Um comentarista, cujo nome infelizmente não recordo, disse certa vez que a narrativa oriental pode apresentar dificuldades de compreensão no expectador ocidental devido à sua extrutura. Concorda com isso?

    2. No seu exemplo sobre o garoto e os peixes, o ato de não conseguir pescá-los com as mãos não pode se tornar um conflito interno devido uma possível frustração?

    Abraço!

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  6. Delfin, os conceitos de tensão dramática, causa e efeito, etc são diferentes no Oriente e no Ocidente. Só esse tema já rendeu milhares de páginas, acho. Quanto ao conflito, qualquer coisa pode ser vista como conflito, e é isto que esvazia o conceito. Uma folha levada pelo vento pode ser um conflito entre o vento e a força da gravidade. Em termos de dramaturgia ou literatura, precisa ser conflito mais claro: confronto, disputa, choque explícito de 2 vontades.

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  7. Interessante como essa estrutura em quatro atos oriental meio que ecoa a estrutura de uma tese acadêmica.

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