Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 14 de abril de 2012
2844) Reescrever um livro (14.4.2012)
(Neil Gaiman, por Mizzy Chan)
Grande parte das carreiras literárias são resultado de uma experiência inesquecível de leitura que faz alguém pensar: “Quero escrever assim também”. Ninguém começa a escrever sem ter lido algo que o emocionou, que lhe deu uma nova maneira de pensar, de ver as coisas. Jean-Paul Sartre, na infância, copiava à mão romances de aventuras, trocando os nomes dos personagens e algumas peripécias, e os assinava com seu próprio nome. August Derleth era um fã tão ardoroso das histórias de Sherlock Holmes que inventou um detetive praticamente idêntico, mas para poder publicar as histórias trocou o nome do personagem para Solar Pons. Outras vezes, a motivação pode vir de um livro ruim. Diz-se que Fenimore Cooper trabalhava como marinheiro e um dia, numa daquelas longas esperas a que os marinheiros são submetidos, estava lendo um livro de aventuras. A certa altura jogou-o para um lado dizendo: “Que coisa idiota, até eu seria capaz de escrever um livro melhor do que este”. Os amigos riram dele, fizeram algumas apostas, e Cooper escreveu O Último dos Moicanos.
Neil Gaiman, o autor de Sandman, falou numa palestra sobre a impressão que lhe causou a leitura de O Senhor dos Anéis de Tolkien. Totalmente arrebatado pela obra, diz ele, “cheguei à conclusão de que O Senhor dos Anéis era, provavelmente, o melhor livro que poderia ser escrito, o que me colocou numa espécie de sinuca. Eu queria ser um escritor quando crescesse. Não, não é verdade: eu queria ser um escritor naquele momento exato. E eu queria escrever O Senhor dos Anéis. O problema é que ele já tinha sido escrito”. Esse tipo de entusiasmo é resolvido, hoje, pela existência do que chamamos “fan fiction”, histórias escritas pelos fãs utilizando o universo e os personagens de uma obra que admiram. Prolongamentos, extensões amadorísticas de uma obra profissional em sua origem. É uma atividade ironizada por muita gente, mas que acho positiva, porque ajuda o jovem fã a treinar sua mão dentro de um contexto dramatúrgico que ele já conhece bem e onde sabe se movimentar.
Depois da fan fiction, entretanto, pode surgir a literatura profissional. Neil Gaiman não reescreveu Lord of the Rings, em compensação criou a série Sandman de quadrinhos e uma porção de ótimos romances, como Neverwhere, American Gods, The Graveyard Book. Será que são tão bons e tão historicamente importantes quanto obra de Tolkien? Não importa: são os livros de Gaiman, os livros que ele tirou de sua própria imaginação e de sua memória afetiva, livros modernos ambientados em Londres, nos EUA, em cidadezinhas imaginárias... Livros que Tolkien não poderia ter escrito.
Tem um probleminha nessa história: James Fenimore Cooper já havia escrito vários romances antes de O Último dos Moicanos.
ResponderExcluirObrigado pela correção. Eu li esse episódio assim como reproduzi. Vai ver que o autor estava resumindo numa só ação um processo que durou anos.
ResponderExcluirNa Wikipedia achei este comentário:
ResponderExcluir"It is thought that the novel was written after a challenge made by his wife. His biographer Warren Walker records it this way:
"... In the customary practice of the day he was reading aloud to his wife one evening from a current English novel, but found the story dull. Throwing it aside, he declared, "I could write a better book than that myself." And Susan's challenge to make good his boast resulted in his writing Precaution (1820)."
Diz-se que na época ele gostava de ler Jane Austen, então talvez "Precaution" fosse uma resposta ao "Persuasion" dela.
Agora faz mais sentido. A essência é a mesma, mas modificaram a história para deixá-la mais interessante.
ResponderExcluirPersuasion foi lançado apenas dois anos antes de Precaution. Ler uma obra sem que o seu autor esteja sob a aura da consagração pode gerar uma reação bem mais honesta, pois não temos aquela voz dizendo "este livro é um clássico incontestável, você precisa gostar dele".