quinta-feira, 24 de novembro de 2011

2722) A segunda Brasília (24.11.2011)



(elefante branco da África do Sul, foto de Gero Breloer)

A Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 se aproximam. Olhando o horizonte de eventos, ainda não consegui enxergar a bola rolando no gramado nem os atletas correndo nas pistas. O que enxergo são as partes superiores dos estádios, dos ginásios, dos viadutos, dos complexos esportivos e das vilas que serão erguidas por construtoras eufóricas. Tanto dinheiro gasto talvez tenha um bom reflexo na pirâmide social brasileira. Alguém vai passar da classe C para a B, e alguém vai passar da B para a A-. A classe A+, como sempre vai continuar sendo um clube fechado com número fixo de sócios. E o fato de toda essa movimentação atingir menos de 1% da população não tem muita importância, porque ao restante caberá o consolo de sempre, a “geração de empregos”.

Na África do Sul, a maioria dos estádios construídos para a Copa de 2010 está entregue às baratas, porque o futebol local não tem força econômica suficiente para torná-los rentáveis. Estão fechados para jogos, abrindo apenas para que turistas de todos os países entrem e tirem fotos para mostrar na volta para casa: “foi aqui que nossa Seleção ganhou de Fulano ou Sicrano”. Não sei como anda a média de público no Campeonato Brasileiro, mas me lembro que no primeiro semestre o campeonato regional com maior média de público era o pernambucano, com 7 mil pagantes. Na maioria dos Estados (com exceção de Rio e São Paulo) existe apenas um grande clássico unindo duas grandes torcidas: Gre-Nal, Ba-Vi, Cruzeiro x Atlético, etc. Esses jogos serão capazes de tornar rentáveis os elefantes brancos?

O que se desenha no horizonte é uma nova Brasília de concreto, cimento, aço, cifrões invisíveis e tenebrosas transações. Brasília (independentemente das coisas positivas que sua criação acarretou) provocou rombos gigantescos e fortunas instantâneas. Quando eu era pequeno ouvia histórias de como Brasília tinha sido construída. Fulano de Tal se comprometia a entregar pelo preço X um total de 50 caminhões de areia. O caminhão entrava no canteiro de obras, sua entrada era registrada (“Primeiro caminhão!”), ele ia até o final, saía, dava a volta, entrava de novo (“Segundo caminhão!”) e passava o dia assim.

Essa lenda urbana lembra a bolsa inesgotável das histórias de cordel; e bate com a das republiquetas latino-americanas que no desfile do Dia da Pátria, diante de embaixadores estrangeiros, faziam a mesma meia-dúzia de batalhões darem a volta ao quarteirão e desfilarem de novo. Algo me diz que depois desses mega-eventos esportivos o valente Eduardo Galeano vai ter que acrescentar um apêndice de 50 páginas ao seu clássico As Veias Abertas da América Latina.

2721) A morte da menina (23.11.2011)



No século 19, grande parte da literatura popular era publicada em folhetins, aqueles rodapés dos jornais diários, em forma de narrativa seriada. Todo dia, ou toda semana, conforme o caso, saía mais um capítulo da história. O leitor recebia o jornal em casa, se fosse assinante; ou ia até a banca para comprá-lo. Exatamente como hoje. E nesse contato diário com o jornal ele ia, entre outras coisas, acompanhando aventuras policiais, de capa-e-espada, melodramas sentimentais ou dramas familiares.

O folhetim era mais típico da França, mas foi Charles Dickens o grande folhetinista inglês, e um dos maiores de todos os tempos. A maioria dos seus romances foram publicados primeiro assim, como folhetins serializados, que os leitores corriam a comprar assim que o jornal saía às ruas. Um desses romances foi A Velha Loja de Curiosidades (1840-41), do qual se conta a seguinte história.

A protagonista é Nell, uma órfã de bom coração que vive perseguida pelas piores adversidades, como é de praxe no gênero. Todo mundo se comovia com a bondade da menina, os sacrifícios que era obrigada a fazer, e a doença que ia minando sua resistência, fazendo todo mundo ficar temeroso pela sua vida. Os jornais com a história de Nell vinham de navio da Inglaterra para os EUA. Cada navio trazia um pacote de jornais com novos capítulos da aventura. E a ansiedade dos leitores era tanta que, reza a lenda, quando um desses navios chegou ao porto de Nova York os marinheiros no convés viram lá embaixo, no cais, uma multidão de gente se espremendo, se empurrando, e gritando para eles no navio: “A menina morreu?...”

A ansiedade em saber o que acontece num folhetim (e a telenovela cumpre hoje a mesma função) impedia os leitores de ficarem em casa, esperando que o jornal fosse enfiado por baixo da porta. Não, eles trocavam de roupa, pegavam um tílburi ou um cabriolé (sei lá o que servia de táxi naquele tempo) e iam até o cais do porto no dia e hora previstos para a chegada do navio. E o grito coletivo da multidão mostrava que todos supunham, provavelmente com razão, que a tripulação do navio já tinha lido os episódios mais recentes e sabia o desfecho da história.

Hoje, lemos nas revistas os resumos de todos os capítulos de novelas que irão ao ar durante a semana. O suspense novelesco cumpre duas etapas. Primeira, sabermos “se a menina morreu”. Segunda, saborearmos, munidos desse conhecimento, cada momento de drama, cada diálogo sentimental, cada arroubo dos atores. Temos primeiro a notícia da cena (a fruição do enredo) e depois a cena em si (a fruição do estilo). Não são emoções contraditórias; são complementares.

2720) O mar e o sertão (22.11.2011)




Glauber Rocha popularizou a frase “O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. A linguagem profética é um subgênero da poesia. Uma linguagem em tom elevado, usando imagens vívidas num contexto paradoxal que pode ser interpretado de mil maneiras diferentes. 

Há uma forte interpenetração entre profecia e poesia. Aí estão livros como Mensagem de Fernando Pessoa, as visões versejadas do sapateiro Bandarra, as Centúrias de Nostradamus. 

As profecias das bruxas de Macbeth, da pitonisa de Delfos, ou dos sermões de Antonio Conselheiro compartilham essa linguagem. Estamos sempre a um passo de entendê-la por completo, e ela sempre nos escapa por um pouquinho. E cada fato que acontece diante dos nossos olhos parece confirmar, de um modo diferente, essas visões. 

Minha profecia predileta ainda é a do Padre Cícero: “Vai chegar o tempo em que a roda grande vai passar por dentro da roda pequena”. A frase de Deus e o Diabo na Terra do Sol também traz embutida em si essa promessa de que o mundo sofrerá mudanças radicais – promessa, aliás, que é a mercadoria mais vendida pelos profetas de todos os tempos. 

Essa troca de posições entre o mar e o sertão parece também se harmonizar com o que a ciência nos diz sobre a forma antiga dos continentes. Havia o tal de Gonduana em que a América do Sul se encaixava no “sovaco” da África como duas peças de quebra-cabeças. Dizem meus amigos cearenses que as palavras atuais “Ceará” e “Saara” vêm de uma mesma palavra remota, que preservava a lembrança de quando essas duas regiões eram uma só, antes da separação dos continentes. 

Glauber nos fez imaginar um sertão sendo invadido pelos tsunamis torrenciais produzidos pelo efeito estufa e pelo degelo dos polos, enquanto por uma descompensação geológica qualquer o leito do oceano ficaria exposto ao sol, o plancto ressecando em rochas indestrutíveis. 

Mas talvez o sentido da profecia não esteja em “virar a moeda” de quem está quieto, no caso o Oceano Atlântico. Ela se refere somente ao sertão. Visitem o Cariri cearense, a feira de Juazeiro, vejam aquelas pedras fósseis com esqueletos de peixe, achadas nas regiões caririzeiras mais áridas. O sertão pode virar mar porque naquele mesmo local existia um mar que virou sertão. 

O que esteve submerso um dia, e hoje não passa de um raso requeimado pelo sol, pode ser submerso de novo. O oceano talvez se detenha diante do Arquipélago da Borborema, rodeando-o. Os peixes encravados nas pedras do Juazeiro abrirão os olhos, abrirão as guelras e voltarão a nadar nas suas águas antiquíssimas. O sertão é uma mera fase entre dois momentos do mesmo mar oceano. Quem sobreviver, verá.