quinta-feira, 11 de agosto de 2011

2630) A palavra Zumbi (9.8.2011)



Cresci numa época em que filmes de zumbi eram raros, não estavam na moda como hoje. É interessante que não havia “livro de zumbi”, pelo menos que eu me lembre; era um gênero exclusivamente cinematográfico, e a imagem que me ficou mais bem gravada foi a de um filme B que vi nos anos 1960, Invasores Invisíveis, em que alienígenas davam um jeito de entrar no corpo de pessoas mortas e sair vagando por aí, com manchas escuras no rosto e os braços estendidos horizontalmente.

Logo depois surgiram as notícias sobre um show de MPB fazendo sucesso no Rio de Janeiro, chamado Arena conta Zumbi. Viciado em ver as coisas sob o prisma do “trash movie”, durante muito tempo imaginei que o título era “Arena contra Zumbi”. Não era. Contava a história de Zumbi dos Palmares, o líder negro dos escravos foragidos, cujo quilombo virou símbolo da resistência negra, e na época virou também símbolo da resistência de intelectuais, artistas e estudantes contra o golpe militar de 1964.

É claro que a coincidência de nomes me chamou a atenção, mas a essa altura eu já sabia que os “zumbis” eram produzidos artificialmente através do vudu, uma espécie de magia negra do Haiti, que enfeitiçava as pessoas e as transformava em mortos-vivos. Uma consulta ao Online Etimology Dictionary (www.etymonline.com) diz que a palavra é registrada desde 1871, com origem na África ocidental (do kikongo “zumbi”, fetiche, e do quimbundo “nzambi”, deus); originalmente era o nome de um deus-serpente e depois virou sinônimo de “cadáver reanimado” no culto vudu. Também pode vir da palavra do idioma crioulo da Louisiana que significa “fantasma, espectro”, vinda do espanhol “sombra”. O sentido “pessoa bronca, estúpida, apática” é registrado desde 1936.

O mais interessante disso tudo é que a mesma palavra significa “morto vivo” em dois contextos e duas culturas totalmente diversas. Na cultura branca, significa alguém que morreu e deveria permanecer morto, mas que foi artificialmente obrigado a se comportar como se estivesse vivo, embora esteja em decomposição. Na cultura negra (no sentido específico de Zumbi dos Palmares), significa alguém que foi declarado morto mas que para seus seguidores permanece vivo e atuante, um morto que se recusa a morrer. Note-se que após a morte de Zumbi sua cabeça foi fincada numa estaca e exposta em praça pública (tal como ocorreu com Tiradentes) para “atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal”, segundo carta do governador de Pernambuco ao Rei.

O morto sempre vivo, o morto que se recusa a morrer, é um mito de cultos sagrados e profanos. Jesus Cristo é também um morto que emerge vivo da tumba. Heróis dos mais diversos feitios (Padre Cícero, Lampião, Elvis Presley) são tidos como ainda vivos pelos seus seguidores. O zumbi do cinema de terror é um Zumbi sem Palmares, sem propósito, sem projeto, sem ideal. É o que somos quando queremos simplesmente viver, sem nada mais além disso.


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