No espaço de menos de 24 horas li, em diferentes livros, textos que pareciam interligados pela mesma idéia.
Siete Conversaciones com Adolfo Bioy Casares (Buenos Aires, El Ateneo, 2001) transcreve os diálogos de Fernando Sorrentino com o autor de A Invenção de Morel, que a certa altura, lembrando os namoros da adolescência, conta que era muito tímido mas ao mesmo tempo gostava de abordar moças (mais velhas que ele) na rua. Certa vez ele marcou encontro por telefone com uma corista de um teatro de variedades, a qual ficou um tanto decepcionada ao encontrá-lo pessoalmente e ver que ele tinha apenas treze anos. Diz Bioy:
“Eu agia como se fosse esquizofrênico, ou pelo menos, como se me desdobrasse em dois. Dizia a mim mesmo: Esse sujeito nervoso e tímido que sou não vai conseguir absolutamente nada se eu não o obrigar a fazê-lo”.
Li isso ontem à noite, e hoje de manhã, folheando Anéis de Fumaça (Lisboa, Assírio e Alvim, 1997), uma coletânea de poemas e de letras de músicas de Laurie Anderson, vejo a autora dizer na introdução:
“Em criança, sempre tive a sensação de haver uma impostora exatamente igual a mim em casa dos meus pais que fazia coisas civilizadas como ir à escola, estudar e ser um membro decente da família enquanto eu tinha a liberdade de meter o dedo no nariz, saltar para a bicicleta, vadiar e ver as coisas reais. Ainda hoje sinto o mesmo. Provavelmente, sou apenas uma vulgar esquizofrênica”.
Agora no fim da tarde, traduzindo uma carta escrita por Robert Louis Stevenson em 1887, vejo-o descrever assim uma alucinação que teve num acesso de febre:
“Eu estava convencido de que minha dor estava relacionada a um toróide, ou um rolo de cordas. Em que consistia ela? Do que se tratava, precisamente? Eu não procurava saber: pensava apenas que se as duas extremidades desse toróide se juntassem, minha dor cessaria. Durante todo esse tempo, com uma outra parte do meu espírito, algo que eu me arriscaria a definir como ‘eu mesmo’, eu estava plenamente consciente do absurdo desta idéia, sabia que ela era indício de uma sanidade mental em perigo, e travava com ‘meu outro eu’ uma luta furiosa”.
Stevenson não usa, como os outros usaram, o termo “esquizofrênico” (que só foi criado em 1908), mas em todos esses depoimentos vemos como a cisão de personalidades, que no tempo dele só era admitida na hipótese de uma doença, tornou-se algo tão comum que pessoas normais, falando de experiências rotineiras, usam o nome de uma doença grave para descrevê-las.
Isso mostra:
1) o quanto o linguajar médico foi assimilado e diluído pela linguagem comum (“paranóia”, “trauma”, “psicose” são usadas a qualquer pretexto);
2) o quanto as experiências de dupla consciência ou dupla personalidade são hoje aceitas como parte da identidade.
Como Fernando Pessoa previu, o século 20 foi a época em que caiu o Mito da Personalidade Única, a ilusão de que cada mente tem apenas um conjunto de características a que ela pode acoplar o sentido do “Eu”.
Eu opero permanentemente com duas Giovanas: a 1 e a 2. Meu terapeuta prefere chamá-las de Giovana e Giovaninha.
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