Há muitas maneiras de fazer crítica literária, e seria insensato querer que só existisse uma. Eu procuro aquelas com que me identifico. Uma delas é esta: ler devagarinho, e não a-toque-de-caixa, como sempre lemos um livro pela primeira vez, naquele entusiasmo juvenil de saber o que acontece com aquelas pessoas.
A primeira leitura é sempre para saborear o açúcar do livro. A segunda é para mascar seu chiclete constitutivo, que não tem sabor mas estimula as glândulas salivares, exercita os dentes e desenferruja a mandíbula.
O clássico Mimesis de Erich Auerbach (Ed. Perspectiva) surgiu durante a II Guerra, quando o autor, um filólogo ilustre, teve que se refugiar em Istambul. Ali ele não dispunha de manuais técnicos, bibliotecas especializadas, etc. Esta carência não o desanimou. Seu livro são quase 500 páginas de análises minuciosas de textos clássicos: Shakespeare, a Bíblia, Virginia Woolf, Homero, Abade Prévost, Stendhal, Rabelais, Cervantes...
Diante dessas obras, Auerbach esqueceu a bibliografia crítica, arregaçou as mangas e encarou os livros de-testa. Lendo, e interpretando apenas com o que já trazia no juízo.
Seu método é o mesmo de James Wood, e seu objetivo está posto no título completo do livro: Mimesis – A representação da realidade na literatura ocidental.
Auerbach passa um pente fino nos textos, e analisa o uso de verbos, o uso da primeira ou da terceira pessoa, a capacidade de visualização do autor, o modo como ele revela (ou não) o que se passa na mente do personagem. Compara um autor com seus contemporâneos e mostra por que ele era diferente. (A gente pode até ler Cervantes ou Rabelais, mas quem de nós leu a literatura que se fazia no tempo deles?)
No fim do livro, diz Auerbach:
“Também é resultado da escassez de literatura especializada e de periódicos o fato deste livro não conter notas; afora os textos, cito relativamente pouca coisa, e este pouco deixou-se introduzir facilmente no texto. Aliás, é bem possível que este livro deva agradecer a sua existência precisamente à falta de uma grande biblioteca especializada; se tivesse podido tentar informar-me a respeito de tudo o que foi feito acerca de tantos temas, talvez nunca teria chegado a escrever”.
Todo intelectual é vítima do Complexo de Penélope (desmanchar de noite o que produziu durante o dia) e do Paradoxo de Zenão (nunca finalizar uma tarefa porque está sempre inventando tarefas intermediárias, todas imprescindíveis e intermináveis).
Eu, que às vezes critico aqui os acadêmicos, afirmo: acadêmico de verdade é o que é capaz de encarar um livro frente a frente, contando somente com o que já sabe. Se não, é porque o que já sabe não lhe vale de muita coisa.
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