quinta-feira, 14 de abril de 2011

2530) Telefone sem filósofo (14.4.2011)



Eu vinha andando por uma calçada da Conde de Bonfim, quando passei pela frente de uma loja da TeleRio e vi, entre aquelas placas de cartolina com propaganda em letras enormes, o letreiro: “Telefone sem filósofo: 69,90”. Dei mais dois passos, a ficha caiu e eu retrocedi. Entrei na loja com a testa franzida e um ponto de interrogação com meio metro de altura flutuando sobre minha cabeça. O vendedor que me atendeu era baixinho, com três canetas no bolso da camisa, voz telegráfica. “Tem telefone sem filósofo?”, perguntei. Ele: “Claro. A partir de 69,90, com alguns modelos em outra faixa de preço, dependendo dos acessórios, e tudo em seis vezes no cartão”. Pedi para ver um e ele me levou até uma estante de onde puxou uma caixa, abriu, mostrou. Parecia um telefone comum.

“Que história é essa de sem filósofo?”, perguntei. “Tem telefone-com?” “Claro,” disse ele, “existem várias marcas no mercado, mas algumas pessoas não gostam, então o modelo-sem está tendo uma aceitação muito grande. Além de tudo, existem várias faixas de preço bastante convidativas, e o senhor pode fazer tudo em seis vezes no cartão”. “Tá legal, “falei, “mas eu sou de fora, acho que estou meio desinformado. Nunca vi um telefone com filósofo. Como é que funciona?”

Ele era meio prolixo, portanto vou parafrasear. Me explicou que era um software novo, desenvolvido na Europa, que transportava para as chamadas telefônicas algumas funções de hipertexto. Às vezes a conversa telefônica deixava o usuário sem entender direito, e era possível pedir uma opinião a um software filosófico que a interpretava. No modelo econômico, tínhamos acesso a opiniões de Platão, Aristóteles, Kant, Marx e Freud. Modelos mais caros ampliavam esse leque, incluindo nomes que iam de Wittgenstein a Derrida. Fiz cara de incredulidade e ele pegou outro aparelho, plugou na parede e mostrou um botãozinho. (Que aliás tem no meu telefone; nunca usei porque não sabia pra que era.)

Liguei para meu editor, que me perguntou: “Querendo adiantamento, de novo?” Eu: “Não, estou na Tijuca, fazendo umas compras. Mas já que falou nisso... Dá pra me adiantar uma grana?” E ele: “Ih, agora fiquei indeciso”. Então, atendendo aos gestos do vendedor, apertei o botãozinho. Veio uma mensagem gravada me pedindo para apertar de novo quando ouvisse o nome do filósofo que desejava consultar. Depois de meia-dúzia ouvi “Jean-Paul Sartre”, e apertei. Pois não é que uma voz sexagenária, com leve sotaque francês, comentou: “A indecisão que precede a ação é apanágio do homem livre. Hesitar é quase sinônimo de escolher, e escolher pressupõe ser dono do próprio destino. Quem decide sem hesitação está possivelmente sendo levado a fazê-lo por forças alheias a sua vontade. O homem que hesita é um homem disponível para a ação.”

A verdade é que, quando a ficha caiu, eu dei dois passos atrás e li direito a placa, onde estava escrito: “Telefone sem fio só 69,90”.

Um comentário:

  1. Adorei. Passo por isso de vez em quando. Vejo algo que imagino ser outra e viajo na possibilidade de aquilo ser verdade. E dou muita gargalhada com isso. Beijão!

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