Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quinta-feira, 17 de março de 2011
2506) Para compor uma canção (17.3.2011)
Reza a lenda que anos atrás encontraram-se num café de Paris os dois maiores poetas do rock, Bob Dylan e Leonard Cohen. (Existem outros igualmente grandes: Tom Waits, Lou Reed, John Lennon... Mas quando a gente conta uma historieta é bom fazer de conta que o mundo em volta não existe.)
Os dois trocaram impressões sobre o modo de compor de cada um. Dylan, que em seus shows já cantou “Hallellujah”, perguntou a Cohen quanto tempo ele tinha levado para escrever a canção. Cohen disse que a escreveu em cerca de dois anos, e Dylan quase caiu da cadeira.
Depois foi a vez de Cohen elogiar “I and I”, do álbum Infidels que Dylan tinha acabado de lançar; quanto tempo levou para compô-la? Dylan respondeu: “Quinze minutos”, e foi a vez de Cohen quase cair da cadeira.
Um leitor que não goste muito de Cohen pode ver nisso uma prova de que Dylan é um gênio e Cohen um pobre coitado que leva anos para fazer o que o outro faz num piscar de olhos. Em contrapartida, alguém também pode achar que Cohen é um artesão cuidadoso e que as canções de Dylan são feitas “nas coxas”.
Na verdade, o tempo gasto para produzir uma canção não é, por si só, indício de talento ou de falta dele. Mostra apenas que existem temperamentos criativos diferentes. E até momentos diferentes, num mesmo compositor.
E ainda assim esses cálculos não devem ser levados tão ao pé da letra. Se Fulano diz que levou dois anos para fazer uma música isto não significa dois anos de trabalho ininterrupto. Ele provavelmente está calculando o período desde a finalização do primeiro trecho (que pode ser a mera melodia sem letra, ou então algumas linhas da letra final) até o momento em que deu a música por pronta.
O tempo total de trabalho, ao longo desses dois anos, pode ter sido de apenas algumas horas. Isso é normal no processo criativo. A gente faz um pedaço, guarda. Meses depois se lembra, faz outro pedacinho, guarda de novo. Dizem que o recorde desse processo são os vinte anos que Dorival Caymmi levou para considerar pronta a valsa “Das Rosas”. (E pelo resultado valeu cada dia.)
Segundo Zuza Homem de Mello (A Canção no Tempo), Gilberto Gil compôs “Super-Homem – A Canção” em uma hora, e Caetano Veloso fez “Sampa” em poucos minutos, pegando morcego, aliás, na melodia de “Ronda”, de Paulo Vanzolini. (Atenção, estou falando em pegar morcego, não em plágio.)
Certas idéias surgem com tal originalidade e nitidez que são capazes de gerar em pouquíssimo tempo uma obra complexa. Dylan compôs “Sad-eyed Lady of the Lowlands” no estúdio, ao longo de várias horas, enquanto os músicos contratados, que mal o conheciam, jogavam baralho na sala ao lado. A versão gravada em Blonde on Blonde, sem ensaio, é a primeiríssima vez em que a canção foi tocada do começo ao fim, inclusive pelo autor.
Cada música tem seu tempo de maturação, e isso depende muito do ritmo mental de quem a produz. Nada tem a ver com o talento dele ou com a qualidade do produto final.
Ia falar do nosso Buda Nagô mas voc6e já falou. Dorival levou uma vida pra fazer pouco mais de duzentas canções e valeu cada minuto por cada uma.
ResponderExcluirerrata: levou quase uma século para fazer um pouco mais que cento e poucas canções.
ResponderExcluirMas quando fazia...
É exatamente assim que se dá o processo de criação. Cada um tem seu tempo. Pena que o mercado não tem tempo pra tratar o tempo assim e muita gente com um trabalho artístico de valor não consegue viver apenas da sua arte.
ResponderExcluirHyldon compôs "As dores do mundo" em pé num ônibus, enquanto atravessava o túnel Rebouças.
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