terça-feira, 13 de abril de 2010

1905) O livro de Sivuca (17.4.2009)



Sivuca foi um dos maiores sanfoneiros do Brasil. A palavra “sanfoneiro” perdeu (espero) o tom levemente depreciativo que já a cercou, e isto se deve em grande parte a Sivuca, Dominguinhos, Oswaldinho e muitos outros mestres que mostraram que um sanfoneiro pode ser um músico tão completo e tão complexo quanto um pianista. Mesmo assim, foi como sanfoneiro que ele caiu no gosto e na memória do povo, principalmente na Paraíba; é com esse termo informal e próximo que nós da imprensa nos referimos ao músico de tantos talentos e tantas surpresas.

Hoje às 21 horas, no Espaço Cultural, será lançado num concerto da Orquestra de Câmara da UFPB, com Toninho Ferragutti como solista convidado, o álbum com partituras da obra sinfônica composta por Sivuca, É uma obra que a maioria dos paraibanos (eu incluído) desconhece. Desconhece porque as apresentações ao vivo foram raras, e porque o CD em que registrou a maioria delas (Sivuca Sinfônico, com o maestro Osman Gioia e a Orquestra Sinfônica do Recife) não se encontra com facilidade nas lojas nem é apregoado pelos ensurdecedores carrinhos-de-mão que vendem CDs piratas do Bessa ao Cabo Branco. É, em vários sentidos, uma obra rara.

Reza a lenda que Miles Davis teria escrito certa vez uma carta a Sivuca agradecendo-lhe por ter mostrado a ele que a sanfona era um instrumento musical tão sério e rico em possibilidades quanto qualquer outro. Para nós, isso passa como uma certa ingenuidade e desinformação do grande jazzista, mas é compreensível quando pensamos que nos EUA a sanfona é ainda mais marginalizada do que no Brasil, sendo apenas um instrumento acessório nas músicas “cajun” e “zydeco” na Louisiana. Ainda assim, os americanos produziram grandes mestres do instrumento, e Dominguinhos, por exemplo, já reconheceu sua dívida para com músicos como Tommy Gumina e Art Van Damme.

Um dos números mais pitorescos e mais aplaudidos dos shows de Sivuca era aquele em que ele executava “Vassourinhas” em estilo escocês, árabe, russo, argentino, etc. Apenas com a sanfona e a voz, ele fazia um “photoshop” étnico e sonoro no frevo. Era o seu lado popular, brincalhão, de menino risonho e vaidoso das próprias façanhas. O outro lado é o Sivuca meticuloso e erudito que transparece neste álbum, que inclui também arranjos seus para grupo de câmara incluídos no disco Sivuca e Quinteto Uirapuru e no DVD O Poeta do Som.

Sivuca foi a vida inteira um desafio e um questionamento à divisão entre música erudita e música popular. Divisão das mais incoerentes, porque lida com critérios heterogêneos. Se o critério fosse o grau de absorção, pelo músico, da “norma culta” musical, deveríamos dividir a música, talvez, em música erudita e música espontânea. Se fosse a origem social da forma praticada, deveríamos falar em música aristocrática e música popular. Sivuca é uma das muitas provas de que é possível ser de origem popular e alcançar o universo erudito, e vice-versa.

1904) Sequestro virtual (16.4.2009)



(drangooble)

É um dos golpes mais banais dos bandidos cariocas; não sei se já está em prática na Paraíba. Ligam para a família de uma pessoa, em geral uma criança ou adolescente, e dizem que o garoto foi sequestrado, está em poder deles. A família tem que levar não-sei-quantos-mil reais num lugar assim-assim, agora, já, senão o menino morre. A verossimilhança do golpe é garantida quando o bandido diz: “Se a senhora não acredita que é seu filho, escuta só”. O fone é passado para alguém e ouve-se uma voz abafada, histérica, tartamudeando pedidos de socorro; e logo retorna o primeiro interlocutor: “Vem logo, madame, porque seu filhote tá sangrando muito”.

Qual o pai ou a mãe que não treme na base quando uma bigorna dessas lhe cai na cabeça? Eu me considero um homem de sorte, porque já recebi uma dúzia desses telefonemas, mas na primeira vez que aconteceu era cedo da noite, e enquanto a voz desesperada gritava no receptor “pai, pai, eles vão me matar!” eu estava vendo meu filho a poucos metros, lanchando na cozinha. Desliguei o telefone, depois puxei-o para fora do gancho e deixei ali a noite toda, como a polícia aconselha fazer. Não tendo resposta, os caras ligam para o próximo número da lista e vão tentar a sorte com outro infeliz.

Na segunda vez foi mais dramático. Meu filho estava no colégio, era meio-dia, não tinha chegado ainda. A ladainha era parecida, “pai, pelo amor de Deus, tão me batendo!”. Bati o telefone. Mas ele ainda estava na rua... quem me garantia coisa alguma? Foram dez minutos de suplício psicológico até que a chave girou na porta e surgiu a silhueta desengonçada, mochila às costas, cabelão, camisa “Clockwork Orange”, e aquele ar desligado de quem está sempre pensando noutra coisa e nem sequer estranha chegar em casa para o almoço e ver o pai ajoelhado no centro da sala, beijando o sinteco.

A polícia aconselha ter um código para identificar se é ou não o filho. Zuenir Ventura, no “Globo” sugere tratar os bandidos com ironia. O bandido diz: “Quero dez mil pra devolver seu filho!” E a gente responde: “Dez mil?! Se você me devolver esse pentelho, eu vou querer vinte mil, de indenização!!!”. Talvez funcione. Mas já surgiu uma variante. Falsos pesquisadores ficam rondando a sala de espera dos cinemas, de prancheta em punho. Abordam um adolescente, dizem que é uma pesquisa do Ibope (todo brasileiro acredita na existência do Ibope), pedem nome completo, telefone de casa, nome dos pais, etc. Quando o garoto ou a garota entra na sala de exibição e desliga o celular, eles ligam para casa, já com a ficha completa, sabendo a aparência, como estava vestido, etc., e dizem: “Olhe, madame, só não boto pra falar com a senhora porque meus colegas acabaram de levar ela pro quarto dos fundos”. Os pais ficam no mesmo dilema de Pascal quanto à existência de Deus. A possibilidade de perda, se acreditarmos e aquilo for mentira, é pequena; mas se não acreditarmos e for verdade, quem pode calcular?

1903) O futuro de Terry Bisson (15.4.2009)




(Terry Bisson)

A revista norte-americana Locus está para a ficção científica assim como a Rolling Stone está para o rock. É ali que está a informação mais atualizada e mais confiável, mesmo que as análises mais críticas e mais profundas estejam em outra parte. 

Nos últimos anos, a Locus convidou o escritor Terry Bisson para contribuir com pequenas vinhetas de meia-dúzia de linhas sobre acontecimentos do futuro, sob o título “This Month in History”. O resultado, em forma de pequenas notícias sobre fatos espantosos ou surpreendentes, é um conjunto de pseudo-profecias que além de divertidas lançam uma certa luz sobre o nosso presente. Vejamos:

“29 de outubro de 2064. Chegaram os besouros. Atendendo a um pedido pessoal do Prefeito Trump, o Departamento de Saúde de New York aprova o Crunch Crazy, a primeira rede de fast-food baseada em insetos fritos, a tempo de permitir sua inauguração na semana de Halloween. As pequenas iguarias têm se mostrado populares principalmente entre os turistas de Times Square” (Locus, outubro 2008). 

A notícia sugere um prolongamento político da dinastia de Donald Trump e a invasão da cultura chinesa (e do dinheiro chinês) na economia americana – de onde seriam, afinal, esse turistas em Times Square?

“1 de outubro de 2123. Meca substitui Greenwich. Muçulmanos do mundo inteiro comemoram, e os cartógrafos lamentam, na data em que é oficializado o novo Primeiro Meridiano do globo terrestre” (Locus, outubro 2008). 

Achamos engraçado porque nunca nos perguntamos porque motivo o zero cartesiano dos fusos horários fica em Londres. Mas quem sabe se daqui a um século outro valor mais alto não se alevanta?

Estas duas historietas demonstram não apenas a leveza e mordacidade do humor de Terry Bisson, mas uma tendência do mundo e da FC norte-americana: a transferência gradual de poder do Ocidente para o Oriente, que começou com a criação da União Soviética, cuja decadência na segunda metade do século 20 correu paralela ao crescimento do Japão como uma das grandes economias mundiais. A crise do petróleo dos anos 1970 revelou o poder de um grupo de países árabes, contrastando com a pobreza de grande parte dos demais.

Na virada para este século, foi a China que disparou como grande potência. As nações do grupo chamado de Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) continuam a ser consideradas como forças ascendentes (reascendente, no caso da Rússia). A força política dos países islâmicos, aliada a suas riquezas, transferiu para países como Afeganistão, Iraque e Irã uma fronteira bélica-política que tem sido uma das principais sangrias financeiras dos EUA, e uma das maiores razões para sua perda de popularidade. 

Autores de FC, antenados com essa evolução, e sempre atentos para “a direção em que o vento sopra”, começam a diversificar seus cenários, como o irlandês Ian MacDonald que recentemente escreveu romances ambientados na Índia e no Brasil. O futuro é aqui fora, e os americanos sabem disso.







1902) O Espontaneísmo (14.4.2009)



Falar na contracultura dos anos 1960 é retomar alguns temas básicos: drogas, religiões orientais, vida comunitária, sexo livre, redes descentralizadas de produção e relacionamento. Existem, no entanto, aspectos que são típicos daquela época e que desde então não têm parado de se alastrar, e cada vez mais fazem parte do espírito do tempo. Se isto é algo bom ou ruim... “aí, varêia”, como diz o pessoal em Campina.

Falarei do Espontaneísmo. Naquela época e em toda a primeira metade do século 20 predominava na cultura uma mentalidade vertical, hierárquica. Os pais falam, os filhos escutam. Os professores ensinam, os alunos aprendem. Os mais velhos mandam, os mais novos obedecem. Pois bem, quando a Contracultura (incluídos aqui o rock, o movimento estudantil de maio de 68, a imprensa alternativa, a poesia marginal, a música independente, o cinema underground) começou a travar sua refrega contra a cultura oficial, passou a propor (e em algumas áreas a impor) a visão contrária. E na criação artística isto acabou se transformando no que chamo de Espontaneísmo.

O que é ele? É uma forma de anti-intelectualismo. A não-necessidade de treinamento, cultura, formação, etc. para fazer algo, especialmente nas artes. Todos são iguais. A criação de todos tem o mesmo valor. O que vale é a intuição, a sensibilidade, a auto-expressão, etc. De repente, para ser músico, não era mais preciso estudar em Conservatório: bastava um violão mal-afinado e uma voz cheia de entusiasmo e boas intenções. Para escrever um romance, não era preciso ter lido romances, bastava ter folheado uma edição do “Finnegans Wake” experimentando um baseado (ao que me dizem, esta é uma experiência irreversível, o cara nunca mais será o mesmo). Para ganhar a vida, não era preciso “se formar”: bastava ficar sentado numa praça criando arabescos com fios de cobre e vidrilhos coloridos. E assim por diante.

Era uma forma de anti-autoritarismo, anti-intelectualismo no bom sentido. Era uma das muitas utopias coletivistas e democratizantes daqueles anos em que um dos lemas era “Eu sou ele, como você é ele, como você é eu, e nós somos e estamos todos juntos”. Era uma forma de dizer “não” a uma velha geração travada, repressora porque insegura, autoritária porque sem argumentos, egoísta por medo e hipócrita por egoísmo. Uma maneira de dizer: “Isto que estamos fazendo é mal feito, é desordenado, é sujo, mas é nosso, isto exprime a totalidade do que somos, mais do que se fizéssemos uma obra-prima seguindo os critérios de vocês”.

Como explosão localizada de revolta, isto tem o mesmo valor terapêutico das rebeldias adolescentes e das “picardias estudantis” que toda geração experimenta. Quando isto passa, fica a questão: Como conciliar esse humanismo estético com critérios rigorosos de escolha? Os últimos 40 anos têm sido dedicados ao trabalho de criar um novo sistema de critérios, algo que faça a ponte entre a velha razão e o Espontaneísmo da contracultura.

1901) A cantoria de Viola (12.4.2009)



Peço desculpas aos apologistas do repente; este artigo não versa sobre um violeiro, mas sobre um artilheiro, que já fez as alegrias de muitas torcidas e deu dores de cabeça a todas. Vi-o pela primeira vez no longínquo 1988, quando eu assistia num domingo à noite os “Gols da Rodada” na Globo, e “a voz marcante de Léo Batista” anunciou: “E agora vamos ver a festa da torcida do Corinthians, que acaba de se sagrar campeão paulista, e ver também o gol do título, marcado pelo jovem jogador Viola...” E lá veio a imagem, nos últimos minutos do jogo, da bola cruzada rasteira da ponta direita e aquele neguinho magrela jogando-se de carrinho e empurrando-a para dentro do gol. No domingo passado, 5 de abril, Viola deu um depoimento a Pedro Motta Gueiros, do Globo, e o resultado é o perfil de um jogador cuja origem social não difere muito das de muitos repentistas. Foi um menino pobre, virou atleta rico, foi campeão do mundo pela Seleção em 94, hoje tem 40 anos e joga no Duque de Caxias (RJ).

Diz ele: “No mundo do futebol, você tira cinco que nasceram em berço de ouro. Pega o Kaká, o Caio... O Leonardo também era? Não sabia. O cara fala dez línguas, tinha que ter dinheiro. Eu não falo nem português. (...) Meu pai descarregava caminhão no Brás. Ele se chama Dor, de dor... celino. Dorcelino, dolorido. E a mãe, Joana, era empregada doméstica. A gente morava num barraquinho de madeira, chovia dentro porque os caras tacavam pedra”.

Viola fala da infância difícil, quando fugia da escola para jogar pelada ou carregar sacola de madame na feira. “A gente fazia muita fogueira para se alimentar. Batata-doce é de graça. Em qualquer mato, você capina e arranca uma fenomenal. Em volta do fogo, tinha cinco legais e outros cinco que saíam para roubar”. É uma estatística intuitiva, mas que expressa bem a visão dos rapazes de favela ou de periferia. Metade vira bandido, metade não vira. E sempre que vejo um cara assim, dando duro, fico me perguntando o que o fez preferir ser honesto e ganhar uma merreca, quando poderia entrar para o crime e ter a chance de viver uns poucos anos de riqueza. Claro que eu sei por que foi, uma vez que eu também não entrei para o crime. Mas fico pensando.

Viola tem amigos de infância, com quem convive até hoje, chamados Buteco, Sessenta e Calango. Ganhou dinheiro? “O que eu ganhei já se foi. Para mim, dinheiro continua sendo do capeta, mas num país como o nosso é preciso tê-lo. Se não, você vai no hospital público com dor de cabeça, te aplicam uma injeção, te matam e fazem negócio com a funerária para te vender”. Viola é falastrão, e não perdeu a “goga” de todo boleiro: “Quem encerrou a carreira do Baresi fui eu. Naqueles minutos que joguei na final da Copa de 94, dei dois cortes, ele já caiu sentindo um problema na coluna e nunca mais voltou. Tenho o vídeo.” Grande Viola, grande reportagem, grande Brasil.