Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 17 de março de 2010
1800) As Ligações Perigosas (16.12.2008)
O Marquês de Flammand era um dos homens mais cobiçados da corte parisiense, notório conquistador, famoso pelas beldades que fizera sucumbir aos seus encantos e ao poder de sua fama. Era o homem por quem suspiravam as moças em flor, as balzaqueanas em pleno viço da experiência, e também (por que não?) as damas casadas a quem apenas o vínculo sagrado impedia de se arrojarem aos pés do Marquês, ou, melhor ainda, de lhe abrirem às escondidas a porta de seus aposentos, na calada da noite.
O Marquês colhia a seu bel-prazer as flores púberes que se entreabriam para sua cobiça, mas não tinha pensamentos senão para a mais distante delas. Ironicamente, Mlle. Nazarin era uma “cria” de seus próprios domínios, no Vale do Loire, onde crescera ouvindo elogios rasgados à sua beleza. Alimentava o sonho (incentivado pelas damas maduras de sua família) de que nascera para o Marquês, estava destinada a ser A Última, “aquela”, dizia-lhe sua mãe, “que o fará esquecer todas as outras, e lamentar o tempo que desperdiçou beijando outros lábios que não os teus”.
Por uma guinada do destino, Mlle. Nazarin, aos dezoito anos, partiu para a corte holandesa, servindo de dama de companhia a uma prima. E foi nos salões dos Países Baixos que sua beleza floresceu e sua fama se espalhou, com uma série de romances tórridos, em rápida sucessão, com os fidalgos mais poderosos daquele tempo. Na corte de França crescia o orgulho de que fosse francesa “a mulher mais bela da Europa”, como afirmavam as calejadas damas da corte, diante de cujos olhos já tinham desfilado gerações e mais gerações de rostos e de silhuetas.
Eis que, após sua rumorosa separação de um nobre italiano, Mlle. Nazarin retorna a Paris, sendo recebida com todas as honras. Ainda desperta o alvoroço dos cortesãos de Versalhes: qual dos seus conterrâneos será o felizardo a desfrutar dos seus atributos? O Marquês de Flammand, ainda rico e vigoroso, apesar de grisalho, faz-se anunciar, freqüenta-lhe as recepções, comparece aos bailes em sua mansão, galga de degrau em degrau a sinuosa escada da conquista.
De repente, escândalo! Corre a notícia de que o Marquês surpreendera Mlle. Nazarin em pleno colóquio amoroso com o Duque de St. George, aventureiro de origem britânica, notório pelos seus gastos insensatos e suas alianças escusas. Ofendido, o Marquês de Flammand recua. Nos salões da corte, declara que mesmo traído abdicará da paixão de toda uma vida, e que não criará obstáculos à felicidade do casal. St. George desposa Mlle. Nazarin e a conduz em festa para seus domínios. Mas... em confidência aos amigos, o Marquês confessa ter constatado “in loco” que o estado físico da beldade já não era o mesmo, e que o rival caiu-lhe do céu, para livrá-lo de uma tremenda duma sinuca. (ERRATA: Onde se lê “Marquês de Flammand” leia-se “Flamengo”, onde se lê “Mlle. Nazarin” leia-se “Ronaldo”, onde se lê “Duque de St. George” leia-se “Corinthians”. Obrigado.)
1799) De homem ou de mulher (14.12.2008)
(www.caoazul.com)
Li, numa coluna de amenidades, sobre a gafe de um moça que, num restaurante, entrou por engano no banheiro dos homens. Justificou-se ela: “Tinha um M na porta, e eu pensei que fosse: Mulher”. Não era: era “Masculino”. Bastava que a distraída tivesse visto o F de “Feminino” na outra porta para não perder a viagem. (Aliás, a nota do jornal não diz quanto tempo se passou – minutos, horas? – até que ela percebesse o equívoco, ou fosse resgatada.)
Letreiros de banheiros são um desses casos semióticos aparentemente simples que se tornam um matagal de ruídos de informação. Em tese, bastaria ser curto e grosso e colocar nas respectivas portas, com todas as letras: “Homem” e “Mulher”. Em ambientes mais formais, “Masculino” e “Feminino”. Mas essa simplicidade não basta. Gostamos de ser barrocos, alusivos, metafóricos. Quando uma mensagem é simples demais, como esta, julgamo-nos no direito, e até na obrigação, de inventar uma voluta rococó para dar o recado.
Vai daí que num bistrô afrancesado encontramos uma foto de Brigitte Bardot ao lado de uma de Jean-Paul Belmondo. Em boates da moda, uma foto de Angelina Jolie e uma de Brad Pitt. Em boates mais alternativas, talvez encontremos fotos de k. d. lang e de Michael Jackson. Restaurantes regionais colocam xilogravuras de Lampião e Maria Bonita; estabelecimentos afro exibem Pixinguinha e Clementina de Jesus. E assim por diante.
Já achei que a solução mais radical seria exibir, nessas portas, uma foto ou desenho dos respectivos órgãos sexuais. Esta minha brilhante idéia foi posta em prática pelo bar Vou Vivendo, de São Paulo; mas eram fotos solarizadas, em alto contraste, de tão custosa identificação que foi mais prudente ficar por ali, lavando as mãos, e anotando à sorrelfa quem entrava e quem saía.
Há outro fator de risco. Nos EUA, são muito usados os letreiros M e W, ou seja, “Men” e “Women”. Quem se acostuma em sua terra natal com o M de “Men” pode muito bem se confundir num banheiro brasileiro dividido entre “M” e “H”. (Dizem que em Portugal as portas ostentam a letra “S”, de “Senhores” e “Senhoras”.)
Numa das dezenas de viagens de ônibus que fiz pela Rio-Bahia cheguei certo amanhecer a um ponto de apoio da Itapemirim. Desci para ir ao banheiro, entrei no corredor onde havia a placa “Sanitários”, e me deparei com uma cena digna de uma foto de Cartier-Bresson ou de um cartum de Ziraldo. Um casal de matutos, com um casal de filhos pequenos, parado diante de duas portas. Na primeira, havia o desenho estilizado de uma cartola e de uma bengala com castão de prata; na outra, um colar de pérolas enrolado em volta de um par de luvas. Nos rostos apergaminhados dos sertanejos não havia aperreio, nem perplexidade, nem impaciência, nada, nada. Apenas uma atenção profunda e calma, como se o próprio Deus lhes tivesse mandado uma mensagem em hebraico e eles pensassem consigo: “Calma, vamos olhar mais, a gente acaba entendendo o que é”.
1798) Kingsley Amis e a ressaca (13.12.2008)
(Kingsley Amis)
A ressaca é o que resta de um homem depois que a bebida vai embora.
Histórias de ressaca são pesadelos que boêmios inveterados relatam uns aos outros entre gargalhadas, com a coragem impudente de quem conta piadas durante um bombardeio. Bebedores contumazes costumam comparar suas receitas preferidas, com a aplicação de sócios dum clube de hipocondríacos.
A minha, nos tempos de juventude em que eu tomava por ano uns três ou quatro pileques de grande porte, era amanhecer no dia seguinte, beber água gelada e rumar para a Sorveteria Flórida, onde tomava duas saladas de frutas com sorvete de maracujá e calda de chocolate. Era tiro e queda. Dez minutos depois da segunda taça eu já estava considerando a possibilidade de uma caipirinha.
A editora inglesa Bloomsbury reuniu num único volume (Everyday Drinking) três textos curtos de Kingsley Amis sobre a bebida e os bebedores (ver: http://www.guardian.co.uk/books/2008/nov/23/kingsleyamis-alcohol/print).
Amis (1922-1995) foi um escritor versátil e famoso. Seus livros mais conhecidos são Lucky Jim (1954), The Anti-Death League (1966), The Alteration (1976). Não li nenhum deles: li seu ótimo ensaio sobre ficção científica, New Maps of Hell (1960) e alguns volumes da série de antologias de FC que ele organizou, Spectrum.
Ironicamente, Amis é hoje conhecido como “o pai de Martin Amis”, porque seus livros foram eclipsados pelos do filho.
Sir Kingsley bebia como gente grande, e a resenha de Everyday Drinking fala dessas sofisticações etílicas que sempre me foram estranhas, como a composição de coquetéis. Admiro os gênios que criam sutilezas como o “Paul Fussell’s Milk Punch” (uma parte de conhaque, uma de bourbon, quatro de leite, mais noz-moscada e cubos de leite congelado) ou o “Lucky Jim” (doze a quinze partes de vodka, uma parte de vermute, duas partes de suco de pepino).
Para quem só toma hoje cerveja e vinho, bebidas assim são de um refinamento digno da Renascença Italiana.
Amis receita alguns desses drinques para “aquecer o coração e dar forças durante um dia árduo, não apenas por ocasião de uma entrevista ou uma viagem aérea, mas na ocorrência de uma festividade angustiante como o Natal, o casamento de um velho amigo de sua esposa, ou o domingo de levar a família para almoçar com a avó”.
Ele assegura que as curas tradicionais da ressaca são irrelevantes, “uma vez que omitem toda aquela enorme, vaga, terrível e cintilante super-estrutura metafísica que faz da ressaca uma rara vereda para o auto-conhecimento e a auto-realização”.
Segundo o resenhador, Roger Scruton, ele atribui ao fenômeno da ressaca grandes páginas de literatura que não a mencionam, mas certamente dela se originam: “trechos de Dostoiévski e de Poe podem ser lidos sob esta ótica, embora a maior de todas as tentativas para captar essa experiência seja A Metamorfose de Kafka, em que o herói desperta pela manhã transformado num inseto do tamanho de um homem”.