Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
1658) O que é steampunk (5.7.2008)
Um dos meus ramos preferidos da ficção científica é o gênero chamado “steampunk”, histórias de FC ambientadas na segunda metade do século 19, de preferência em Londres. Como surgiu esse subgênero? Talvez tenha algo a ver com uma homenagem a escritores que foram pioneiros da FC e Fantasia escrevendo nesse período: H. G. Wells, Conan Doyle, Robert Louis Stevenson, H. Rider Haggard, Bram Stoker, etc.
O nome “steampunk” é uma “variante de “cyberpunk”. Este último fala dos marginais (“punk”) numa sociedade cibernética; o outro fala dos marginais numa sociedade movida a vapor (“steam”). Os romances “steampunk” transcorrem numa civilização em que as invenções fictícias coexistem com lampiões de gás, zepelins, balões, coches puxados a cavalo, locomotivas, etc. É o mundo de Sherlock Holmes, de Jack o Estripador, dos heróis de Charles Dickens, só que invadido de repente por alienígenas, homens artificiais, computadores mecânicos, máquinas do tempo, sociedades secretas, etc.
Em The Difference Engine, de William Gibson & Bruce Sterling, imagina-se que foi possível aos britânicos construir o gigantesco computador mecânico imaginado por Charles Babbage, que funcionava de modo parecido com aquelas calculadoras manuais que tínhamos antigamente nos escritórios – engrenagens, alavancas, rodas dentadas... Um computador assim jamais foi construído (seria, dizem, inviável do ponto de vista mecânico); mas Gibson & Sterling imaginam que ele foi construído, funcionou, e a partir daí colocam na sociedade inglesa de 1855 uma série de elementos transformadores que, na vida real, só vieram a acontecer 150 anos depois.
Um filme “steampunk” recente é O Grande Truque (The Prestige), em que Christian Bale e Hugh Jackman fazem dois mágicos de teatro envolvidos numa batalha de egos; o lado FC da história vem através da presença do inventor Nikolas Tesla, a quem cabe transformar o filme numa história legítima de FC.
O charme maior do “steampunk” é a mistura anacrônica entre o antigo e o futurista. Paradoxalmente, o futurista às vezes é muito próximo ao nosso cotidiano do século 21, principalmente no que se refere a informática, equipamentos eletrônicos, etc. E a tecnologia da época Vitoriana nos leva de volta a uma época em que havia uma crença ilimitada na razão da Ciência e nos inevitáveis benefícios que ela nos traria. A Ciência de hoje está inextricavelmente entrelaçada ao nosso cotidiano, aos nossos problemas. Engenharia genética, clones, DNA, tudo isto está permeado de comercialismo e exploração industrial. O programa espacial vive marcando passo. Os computadores dominaram o mundo, mas se nivelaram ao automóvel e à TV, banalizaram-se como meras engenhocas domésticas. O cenário Vitoriano, levando-nos de volta aos tempos de Julio Verne e H. G. Wells, nos transporta para um momento mágico da História em que tudo parecia ainda mais possível do que hoje.
1657) Acredite, Fluminense (4.7.2008)
Peço desculpas mais uma vez aos meus vinte e poucos leitores, principalmente leitoras, que não se interessam por futebol. Tenho que voltar mais uma vez ao assunto, mas não tem outro jeito, é uma disputa atrás da outra: final de Copa do Brasil, Eurocopa, Taça Libertadores... Esta última, curiosamente, me fez experimentar emoções novas, algo que um torcedor calejado como eu julgava impossível de surgir a esta altura de tantos campeonatos. Na quarta-feira 2 de julho, na casa de amigos, diante de um telão gigantesco e de cerveja farta servida por solícitos garçons, assisti a partida final travada no Maracanã entre Fluminense e LDU do Equador. E me vi, eu flamenguista de DNA, torcendo, sofrendo e me abatendo com a vitória-derrota do tricolor.
O Fluminense perdera o primeiro jogo por 4x2. Precisava ganhar por dois gols para empatar a disputa e ir para os pênaltis. Levou um gol aos cinco minutos de jogo, o que transformou o placar acumulado (critério que se usa nesse torneio) em 5x2 para a LDU. Pois o tricolor correu atrás, e Thiago Neves entrou para a História, fazendo três gols que viraram o placar para 3x1 (ou seja, 5x5). Mas aí vieram os pênaltis. Os aziagos, os fatídicos, os inapeláveis pênaltis. Dizem que pênalti é loteria. Não é. Pênalti é treino e tranqüilidade, duas coisas que obviamente faltaram aos cobradores do tricolor. O Flu perdeu três, todos eles mal batidos. Um por Conca, o melhor do time; outro por Thiago, o homem dos 3 gols históricos, e o último por Washington, um centroavante que admiro, mas que fez nessa noite talvez a pior partida de sua carreira. Na hora de bater, estava visivelmente acabrunhado e sem forças.
Teve outra coisa. O goleiro da LDU, que já tinha defendido o primeiro pênalti (Conca), fez uma catimba no segundo. Quando Thiago partiu para a bola, ele abandonou o gol caminhando e dirigiu-se ao juiz fingindo que ia reclamar algo. O chute entrou, mas o juiz, desconcertado, mandou repetir a cobrança. Isso matou o Fluminense. Quando um jogador bate um pênalti numa circunstância como aquela, ele concentra toda a adrenalina que lhe resta (após 120 minutos de esforço) naquele único chute. Se for obrigado a repeti-lo, chuta sem força, sem convicção, extenuado. Foi o que aconteceu com o bravo Thiago Neves, que na segunda vez chutou fraco, em cima do goleiro. Isso desorientou de vez o Flu, e na cobrança seguinte Washington também chutou fraquinho, no goleiro. Acabou, fim de jogo, chau e bença, bata o prego na tampa do caixão.
Chorar? O cara sempre chora (eu, flamenguista, quase chorei vendo o drama alheio em redor). Mas ergam a cabeça, colegas. O Flu foi vice-campeão, e cumpriu jornadas memoráveis, no Maracanã e fora dele. Caiu lutando, de cabeça erguida. Quem pagou mico foi o Flamengo, naquele vexame de 3x0 contra o time do México. Se meu time tinha que perder na Libertadores, quem me dera que fosse da maneira como o Fluminense perdeu.
1656) “Poesia” e “romance” (3.7.2008)
(a 1a. imagem da pesquisa do Google para a palavra "romance")
Certa vez, num debate, uma senhora da platéia opinou:
-- Eu não sei por que consideram João Cabral um dos maiores poetas brasileiros. As coisas que ele escreve não têm poesia nenhuma.
Eu perguntei:
-- O que é poesia, para a senhora? Que poesia é essa que a sra. não encontra nos poemas dele?
E ela disse:
-- Ora!... É uma criança sorrindo, um pássaro cantando, uma mãe vendo o filhinho adormecido... Poesia é isso!
Não manguem, companheiros, porque ela tinha lá suas razões. Durante muito tempo (milênios, ao que parece) era voz geral de que a poesia existia para falar nesses assuntos, reproduzir essas imagens.
O que há é que a poesia lírica brasileira dedicou-se a esses temas durante muito tempo. São temas simples, entendíveis por qualquer leitor (e leitora), de fácil ressonância afetiva. Estão para a literatura assim como estão para a pintura os quadros a óleo representando crepúsculos, jarros de flores, praias com coqueiros.
Os leitores que gostam disso consideram que a função da poesia escrita é falar sobre isso, e se quedam perplexos quando Cabral vem falar de cabras.
O que aconteceu foi uma contaminação da forma literária, a poesia, por um conteúdo específico que se cultivou através dela por algum tempo. A poesia pode e deve falar de qualquer coisa. É uma forma de criação verbal sujeita a regras quanto a sua forma, sem restrições ou obrigatoriedades quanto ao assunto.
Mas quando se insiste muito num tema específico ele passa a ser identificado com o próprio conceito de Poesia.
Coisa parecida, e ainda mais complicada, se dá com a palavra “romance”. Muito antigamente, era todo o conjunto de narrativas feitas nas línguas românicas, ou seja, aquele monte de idiomas resultantes do Latim, falado pelos romanos.
Depois passou a ser usado para designar narrativas em prosa de uma certa extensão.
Do século 19 em diante, com o aumento da alfabetização e a expansão do público leitor, principalmente o público leitor de livrinhos bem baratos, proliferaram as histórias de amor, casamento, traição, fidelidade, etc. Histórias muitas vezes contadas do ponto de vista das personagens femininas: suas atribulações para achar marido, para vencer a concorrência e a maledicência das falsas amigas, para casar, para manter o marido fiel num mundo cheio de tentações...
Enfim: romance passou a ser a narrativa em prosa que falava disso.
Ecos dessa confusão permanecem até hoje. Quando dizemos que alguém é “romântico” queremos dizer que é dado a gestos carinhosos, afetivos, que demonstram sensibilidade para com as mulheres. Ou seja: ele se comporta como os heróis daqueles “romances”.
Os gêneros literários são definidos pelos teóricos através de suas características de forma, de estrutura, de uso da linguagem ou dos elementos narrativos. Mas o público não está nem aí para isto. O público classifica os gêneros pelos assuntos, que são, na maioria das vezes, tudo que o público consegue assimilar e perceber.
1655) Nas garras do terror (2.7.2008)
Quando estou batendo papo com o pessoal na faixa dos 20-30 anos de idade, gosto de recordar “pérolas de nostalgia” dos tempos da ditadura. Quem viveu naquela época passou por situações kafkeanas, absurdas, que hoje são motivo de gargalhadas, mas que naquele tempo, quando a gente sabia que podia ser preso e talvez torturado por motivos absolutamente banais, eram de tirar o sono. Os jovens riem e dizem: “Mas não é possível! Como é que vocês agüentavam viver num tempo assim?” E eu respondo: “Não era muito diferente dos tempos de hoje, pelo menos na Europa e nos EUA. Leiam os jornais, leiam os blogs”.
As ameaças do terrorismo estão gerando pelo mundo afora fatos e situações tão risíveis e aterrorizantes quanto os que nós, estudantes, esquerdistas e cabeludos em geral, vivíamos durante os anos Médici e Geisel. De vez em quando registro esses fatos aqui nesta coluna. Primeiro, porque isto me diverte imensamente. Segundo, porque chamando a atenção para o absurdo disso pode evitar que a gente acabe enveredando pelo mesmo caminho. Terceiro, para reafirmar uma das minhas percepções literárias favoritas, a de qualquer comportamento humano parece absurdo e ridículo, se não compartilhamos todas as mediações e motivações que lhe deram origem.
Numa simples edição do blog de Cory Doctorow (www.boingboing.net) dois desses fatos são relatados. Diz uma manchete no blog: “Empresas aéreas européias testam câmeras-espiãs em cada poltrona para detectar terrorismo em sua expressão facial”. Um projeto muito high-tech: câmara estarão focando o tempo inteiro o rosto de cada passageiro, enviando imagens que serão examinadas por um software capaz de detectar intenções terroristas. Sinais suspeitos seriam, por exemplo, passar a mão no rosto repetidas vezes, ou suar excessivamente. Câmeras colocadas no teto se encarregariam de monitorar outras atitudes suspeitas, como alguém correr dentro do avião, passar um tempo excessivo nas proximidades da cabine, etc.
Outra matéria do blog é fornecida por um correspondente. No aeroporto de Heathrow, em Londres, ele foi obrigado pelos guardas de segurança a trocar sua T-shirt. Por quê? Porque o desenho da camisa mostrava um robô dos “Transformers” empunhando uma metralhadora. Ao que parece, os guardas acharam que isto punha em risco a segurança do vôo. Civilmente, europeiamente, os guardas explicam ao rapaz que ele precisa trocar de camisa. Ele tenta apelar para o bom senso: “Olha aqui, pessoal, isto é apenas um desenho. É um robô de uma série de filmes de animação.” “Claro,” diz um guarda, “é o Megatron”. Na verdade não é o Megatron (informa o correspondente), é Optimus Prime, mas convenhamos que a identidade do robô é o que menos importa num momento como este. O que faz o passageiro? Por sorte ele está viajando apenas com bagagem de mão. Antes os olhos compenetrados da segurança, ele tira a camisa perigosa, guarda-a na mochila, veste outra, e viaja em paz.