domingo, 24 de janeiro de 2010

1566) “Pequena Miss Sunshine” (20.3.2008)




Tendo custado cerca de 8 milhões de dólares, esta comédia de produção independente arrecadou cerca de 60 milhões nos EUA e mais 40 no resto do mundo. Se todos os grandes blockbusters de Hollywood dessem lucros proporcionais a este, a indústria do cinema seria outra coisa. 

Pequena Miss Sunshine foi feito ao longo de cinco anos. O roteiro foi escrito por um estreante (que acabou ganhando um Oscar, prêmio que geralmente ia para um sem-noção qualquer, mas famoso). Só tem gente feia, ou melhor, não tem uma pessoa sequer que faça alguém se virar na calçada e ficar olhando. Não parece um filme americano. Pra ser sincero, parece um filme chileno ou espanhol. 

Quase todas as críticas que li falam que se trata do retrato simpático de uma família disfuncional. E fico matutando sobre as nuances desse conceito. O que é uma família disfuncional? No caso, é uma família em que o marido é especialista em auto-ajuda e não consegue ficar rico, a esposa vive nervosa e não consegue parar de fumar, o avô toma drogas e só pensa em sexo, a menina feinha quer ser misse e se empanturra de sorvete, o adolescente lê Nietzsche e quer ser piloto de guerra, o intelectual proustiano quer se matar por causa de um amor homossexual não correspondido... Na minha terra, amigos, isso não é ser disfuncional (seja lá o que isto signifique), é ser normalíssimo, é ser a média aritmética, o zero-cartesiano da vida real. 

 Talvez venha daí o encanto com que muitos americanos (e brasileiros) tenham recebido essa família atrapalhada. Os atores não são excepcionais, embora o excepcional Alan Arkin esteja muito bem no papel do avô (que lhe deu um Oscar de coadjuvante). Parecem estar representando a si mesmos (e talvez estejam). Suas brigas têm a aspereza chata das brigas-de-família na vida real, que são resolvidas na conversa mas continuam ardendo. 

As coincidências e improbabilidades da história se justificam e são perdoáveis porque só valem para si próprias, não estão ali para encaminhar ou justificar algum falso desfecho de que o autor precisa desesperadamente. Tudo acontece aos solavancos, aos sopapos, aos trancos e barrancos – como na vida real. 

Uma família é um grupo de pessoas que não suportam viver juntas mas não admitem viver separadas. Dito isto, podemos varrer para o incinerador todo um Himalaia de celulóide que o cinema (não só americano) produziu neste século, tentando nos convencer de que a vida em família se parece a um comercial de refrigerante. 

Os Hoover não são problemáticos pelas pessoas que são, e sim porque todos têm sonhos irrealizáveis, todos estão hipnotizados pelas sereias do Sucesso (também chamado O Sonho Americano), que exigem o máximo de pessoas medianas, sabendo que é a única maneira de colher nesse trigal indiferenciado as poucas exceções que sempre existem. Aos que não são excepcionais, resta ser especialista em Proust e empurrar uma kombi enguiçada pela vida afora.





1565) O bote da cascavel (19.3.2008)



Acontece quando menos se espera, mesmo que passemos 24 horas por dia esperando. Surge numa conversa inocente, numa matéria lida no jornal, numa carta ou email de um conhecido, numa notícia na voz do locutor de TV. Está tudo em paz aqui na velha alma, e aí, vupt! Lá vem o bote mortífero da cascavel. Uma frase ambígua, uma notícia casual, uma informação em dez ou doze palavras, mas é o que basta para nos atingir na medula mais sensível do espírito, e inocular ali, durante mortíferos segundos, toda uma robusta ampola de veneno e de maldade. Depois disso, a cascavel metafórica se dissolve no ar, esvaziada, pois na verdade não existe, é constituída apenas do veneno que transporta. E cabe a nós ficar ali, continuar a conversa, sentir a dor se alastrando, fazer de conta que nada aconteceu, e iniciar a luta contra a toxina mortal.

A primeira providência é puxar as rédeas do cavalo brabo que nos habita: evitar a retaliação, o contra-ataque. Atenuar a adrenalina da fúria, deixá-la amainar, proibir a si mesmo o bote-resposta, sempre virulento, sempre desproporcional – porque quem leva uma bofetada nunca pensa em retrucar com outra, pensa logo é numa descarga de metralhadora até secar o pente. A segunda providência é assimilar o veneno, encharcá-lo com algum diluente íntimo que possa neutralizar seu efeito mortal. Às vezes o veneno é apenas uma gota, mas em tal concentração que precisa ser misturado a um Paulo Afonso inteiro para perder seu poder.

A maioria desses ferimentos não é proposital. Os que nos desferem essas setas muitas vezes não sabem o dano que estão causando. Fazem isso sem saber que estão nos ferindo. Fazem porque vivem num ambiente onde se faz isso o tempo todo, com todo mundo – é uma espécie de esporte, ou de competição informal para ver quem faz melhor. Fazem porque quando lhes é feito dói só um pouquinho, e eles imaginam que é assim também com os outros. Fazem porque vivem de mal com a vida e precisam de companhia. Fazem para nos testar, ou para devolver algo que talvez tenhamos feito (lembrem-se, ninguém é bonzinho) com a mesma desatenção. E o veneno que nos inoculam pode ter até um efeito educativo, benéfico – serve para testar nossas convicções, nossa auto-estima, nossa segurança íntima a respeito de nós mesmos e do mundo.

E sempre há um instante em que alguém percebe que a gente está com uma expressão estranha, embora não faça idéia do que pode ter acontecido. Pode ser porque ficamos calados subitamente no meio de uma conversa ruidosa, ou ficamos com a cara fechada; seja como for, alguém nota que houve uma mudança e pergunta: “Ei, o que foi que houve? Você está com uma cara estranha. Aconteceu alguma coisa?” E, nove vezes em dez, a gente consegue buscar forças onde elas não existem, recompor um meio sorriso sabe-se lá como, e pronunciar a frase mágica, que adia para a próxima vez os armagedons e os apocalipses: “Não, não foi nada não”.

1564) Siba e a Fuloresta (18.3.2008)



Saiu o segundo CD do compositor pernambucano Siba, com seu grupo A Fuloresta do Samba. O título é um mote impecável: Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. Os versos nos remetem à canção manguebit de Chico Science que dizia: “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”. É a base da estética alternativa, independente, da rapaziada elétrica das cidades grandes. A única maneira de mudar o mundo é com as próprias mãos, a única maneira de fazer o planeta girar é usando as próprias pernas. Como já previa Geraldo Vandré: “Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo...” É a filosofia da geração DIY, “faça você mesmo”, não fique de braços cruzados, cruzando os dedos, esperando que alguma coisa aconteça. Aconteça você mesmo as coisas.

Foi o que fez Siba quando se afastou do bem-sucedido grupo Mestre Ambrósio (que nunca encontrou uma gravadora à sua altura) e se transferiu para Nazaré da Mata para trabalhar com um grupo de músicos locais, batizado de Fuloresta do Samba a partir do título do seu primeiro CD conjunto, de 2002. A Fuloresta tem à frente Siba como principal compositor e vocalista, acompanhado por um naipe de sopros (sax, trumpete, trombone e tuba) e outro de percussionistas (tarol, mineiro, póica e bombo). O resultado é um som híbrido de bandinha de coreto, grupo de maracatu rural, cirandeiros de praia ou bloco de carnaval de rua. Metais rascantes, estridentes; ratatá permanente de tarol; vocais roufenhos a plenos pulmões; e por cima de tudo a voz limpa e serena do poeta, equilibrando-se entre as melodias suingadas e a prosódia clássica dos versos, como um acrobata que caminha sobre duas cordas-bambas paralelas.

Siba traz para a execução musical dos instrumentistas da Fuloresta um conceito mais profissional de organização de palco, de alternâncias, de formatos ensaiados que mantém o jeito pessoal de tocar de cada um, dentro de uma formatação de show que não surge como uma violência ou como uma pretensa “modernização”. Os músicos tocam daquele jeito. O som é aquele. Os formatos de canção são aqueles. A contribuição maior do compositor e vocalista principal me parece estar na organização dos arranjos e do repertório – o que é feito de acordo com sua experiência de estúdio e de palco – e principalmente nos versos, feitos com técnica impecável e inspiração constante.

Neste disco novo destacam-se os versos impagáveis do martelo sobre futebol, em cima do mote “Ninguém pode ganhar campeonato / se o juiz não tem mãe nem coração”; a hipótese, já explorada pela ficção científica, de “Será que ainda vai chegar / o dia de se pagar / até a respiração?”; a bela e minimalista canção de Biu Roque sobre a folha da bananeira, com um vocal arrepiante; o tom altivo de desafio em “Pisando em praça de guerra”. A poesia de Siba e a música da Fuloresta fazem uma combinação única, que não deve virar receita mas pode servir de exemplo.