Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 24 de janeiro de 2010
1565) O bote da cascavel (19.3.2008)
Acontece quando menos se espera, mesmo que passemos 24 horas por dia esperando. Surge numa conversa inocente, numa matéria lida no jornal, numa carta ou email de um conhecido, numa notícia na voz do locutor de TV. Está tudo em paz aqui na velha alma, e aí, vupt! Lá vem o bote mortífero da cascavel. Uma frase ambígua, uma notícia casual, uma informação em dez ou doze palavras, mas é o que basta para nos atingir na medula mais sensível do espírito, e inocular ali, durante mortíferos segundos, toda uma robusta ampola de veneno e de maldade. Depois disso, a cascavel metafórica se dissolve no ar, esvaziada, pois na verdade não existe, é constituída apenas do veneno que transporta. E cabe a nós ficar ali, continuar a conversa, sentir a dor se alastrando, fazer de conta que nada aconteceu, e iniciar a luta contra a toxina mortal.
A primeira providência é puxar as rédeas do cavalo brabo que nos habita: evitar a retaliação, o contra-ataque. Atenuar a adrenalina da fúria, deixá-la amainar, proibir a si mesmo o bote-resposta, sempre virulento, sempre desproporcional – porque quem leva uma bofetada nunca pensa em retrucar com outra, pensa logo é numa descarga de metralhadora até secar o pente. A segunda providência é assimilar o veneno, encharcá-lo com algum diluente íntimo que possa neutralizar seu efeito mortal. Às vezes o veneno é apenas uma gota, mas em tal concentração que precisa ser misturado a um Paulo Afonso inteiro para perder seu poder.
A maioria desses ferimentos não é proposital. Os que nos desferem essas setas muitas vezes não sabem o dano que estão causando. Fazem isso sem saber que estão nos ferindo. Fazem porque vivem num ambiente onde se faz isso o tempo todo, com todo mundo – é uma espécie de esporte, ou de competição informal para ver quem faz melhor. Fazem porque quando lhes é feito dói só um pouquinho, e eles imaginam que é assim também com os outros. Fazem porque vivem de mal com a vida e precisam de companhia. Fazem para nos testar, ou para devolver algo que talvez tenhamos feito (lembrem-se, ninguém é bonzinho) com a mesma desatenção. E o veneno que nos inoculam pode ter até um efeito educativo, benéfico – serve para testar nossas convicções, nossa auto-estima, nossa segurança íntima a respeito de nós mesmos e do mundo.
E sempre há um instante em que alguém percebe que a gente está com uma expressão estranha, embora não faça idéia do que pode ter acontecido. Pode ser porque ficamos calados subitamente no meio de uma conversa ruidosa, ou ficamos com a cara fechada; seja como for, alguém nota que houve uma mudança e pergunta: “Ei, o que foi que houve? Você está com uma cara estranha. Aconteceu alguma coisa?” E, nove vezes em dez, a gente consegue buscar forças onde elas não existem, recompor um meio sorriso sabe-se lá como, e pronunciar a frase mágica, que adia para a próxima vez os armagedons e os apocalipses: “Não, não foi nada não”.
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