quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

2411) As Instâncias do Poder (26.11.2010)

(Quando viajo este blog vira uma Casa da Mãe Joana. O artigo abaixo, de número 2411, era para ter sido postado aqui no dia 26 de novembro, quando foi publicado no Jornal. Não foi. Vai agora. Vale a numeração. Perdão, leitores.)



Tudo que o Imperador da Ruritânia faz está a cargo dos chefes de setor. O chefe de cada setor (ao qual chamaremos, de agora em diante, de Primeira Instância) está cercado, em seu vasto gabinete de trabalho, por dez sub-chefes, cuja função é providenciar para que suas ordens sejam executadas, e, em caso de dúvida, auxiliá-lo na sua tomada de decisões. Esses dez sub-chefes formam, portanto, a Segunda Instância. Cada um deles, por sua vez, tem cem assessores encarregados de distribuir tarefas, organizar as coisas. Somados, esses mil assessores formam a Terceira Instância, que constitui de certa forma a interface entre poder decisório/organizatório e a mão de obra encarregada de produzir resultados. Observe-se que cada um dos mil assessores tem a seu cargo mil funcionários.

Ora, sucede que um dia o Chefe do Setor de Diapasão amanheceu com enxaqueca, em plena reta final do Levantamento Estatístico de Afinações, a que cabia um recenseamento das afinações predominantes no Império. Todo ano era preciso contar quantas músicas haviam sido gravadas no tom de dó, quantas no tom de dó sustenido, quantas em ré, e assim por diante. Cabeça latejando, o Chefe, inundado de zeros e percentagens, virou-se para os sub-chefes e disse: “Quer saber duma coisa? Essa situação é kafkeana, dadaísta, ionesca. De agora em diante só se pode gravar música num tom. Sol bemol, por exemplo”. Dito isto, desligou o monitor para poupar energia, desceu para a cafeteria, tomou um tylenol e fez um lanche.

À tarde o videofone tocou. Um dos sub-chefes, o Número Oito, atendeu e disse: “Não, não sei, e não tenho tempo a perder com tecnicalidades. Não é fá sustenido, é sol bemol!” E desligou. O Chefe abaixou o jornal (onde estava conferindo a tabela do campeonato e calculando quantos pontos seu time teria que ganhar para fugir do rebaixamento). Ficou pensativo. Onde tinha ouvido, recentemente, a expressão sol bemol?... Engraçado, depois que uma enxaqueca passa o mundo parece meio irreal. Voltou à tabela.

No fim do expediente ele repassava a última planilha Excel com o recorte regional das estatísticas quando deu um pulo horrorizado e chamou o Número Oito. Este lhe garantiu que sim, a ordem fôra repassada e a esta altura já estaria provavelmente na Terceira Instância. O Chefe se desesperou. “Manda voltar! Era um modo de dizer!”. Depois de hora e meia de atividade febril, concluiu-se que seis dos subchefes tinham conseguido, por motivos vários, cancelar a ordem. Mas quatro deles (logo, eles, os mais eficientes! que injusta é a vida!) já tinham providenciado para que sua Terceira Instância desencadeasse o processo. Não demorou muito para que o noticiário das 19 horas informasse que a nova determinação estava sendo posta em prática em todo o Império, e que o Imperador assinara uma lei regulamentando sua execução. “A culpa é das telecomunicações eletrônicas”, disse alguém. “Tudo ficou fácil demais”.

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