Ao listar os equivalentes ao Ulisses de James Joyce em diferentes países, o escritor Joshua Cohen usa de vez em quando o que poderíamos chamar de licença poética. Por exemplo: quando considera que o Ulisses do País de Gales é a peça radiofônica Under Milk Wood escrita por Dylan Thomas em 1954.
Afinal, se falamos no Ulisses estamos falando no gênero romance e no livro que redefiniu (ou, segundo alguns, avariou para sempre) as regras do gênero. O livro de Joyce expandiu as possibilidades do romance como gênero canibalizante de todos os outros: prosa literária, ensaio, poesia, dramaturgia, o escambau.
Assim Cohen justifica sua escolha:
“É também, além do Ulisses galês, o Ulisses dramatúrgico. Under Milk Wood era de início uma peça radiofônica e foi depois adaptada para o palco. Vozes misteriosas convidam a platéia a espreitar a vidas-em-sonho e os monólogos interiores dos habitantes de um vilarejo no País de Gales chamado Llareggub (“bugger all” ao contrário, algo como “que todos se danem”). Depois desta introdução, os habitantes despertam e a plateia, agora conhecendo quais são as motivações e os sonhos de todos eles, começa a acompanhar a história de suas vidas. Under Milk Wood é uma das tentativas mais abrangentes de dramatizar o universo mental de um mundo provinciano”.
Como se vê, há duas conexões principais entre a peça de Dylan Thomas e o livro de Joyce.
A primeira é essa utilização do monólogo interior, o qual aliás não foi inventado por Joyce, assim como a guitarra não foi inventada por Jimi Hendrix. Joyce psicografou os pensamentos erráticos que fluem nas bordas semiconscientes da mente. Imagino (nunca li nem escutei a peça) o que um poeta como Dylan Thomas (criador de imagens espantosas, quase surrealistas, e manejador de um vocabulário dos mais surpreendentes) pode fazer com os recursos do rádio e do teatro.
A segunda conexão é o fato de que Joyce era irlandês e Thomas galês. Dentro da cultura da Grã-Bretanha, irlandeses e galeses são meio nordestinos, ou seja, pertencem a uma cultura menor dentro de uma maior, cuja língua compartilham, mas parecem se alternar o tempo todo entre ímpetos separatistas e estratégias de subversão mítica e verbal.
A comparação feita por Cohen é surpreendente mas acaba rendendo uma boa linha de análise quando faz a equação entre a prosa de Joyce e a poesia de Thomas como eclosões do Modernismo em língua inglesa. Há mais coisas em comum entre os dois do que se imaginaria a princípio.
Thomas deu ao seu volume semiautobiográfico o título de Portrait of the Artist as a Young Dog (1940), o que parece a todos uma referência ao A Portrait of the Artist as a Young Man (1917) de Joyce. Mas ele afirmou que a expressão “retrato do artista quando jovem” designa um subgênero da pintura e serve de título a numerosos quadros.
Em todo caso, Dylan Thomas e James Joyce são como duas montanhas diferentes, feitas do mesmo basalto, que se contemplam à distância.
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