Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 18 de julho de 2010
2281) “Bande à Part” (30.6.2010)
Vi em DVD este simpático filme de Jean-Luc Godard, que nunca tinha assistido. É um filme menor, talvez, um daqueles longas que Godard dirigia em algumas semanas com meia dúzia de atores e uma câmara. Casual, descontraído, com ocasionais momentos de beleza no diálogo. E a fotografia em preto-e-branco de Raoul Coutard, uma das melhores coisas não só do cinema de Godard, mas de toda a “nouvelle vague”. Nada parece tanto com a palavra Cinema quanto aquela tonalidade de pretos-e-brancos contra um fundo cinza.
A narrativa é de um policial B típico, baseada num romance de Dolores Hitchens (Fool’s Gold): uma moça e dois rapazes decidem roubar o dinheiro da casa onde ela trabalha, e, depois de um planejamento muito furreca, realizam um assalto mais furreca ainda, que acaba mal. Godard, Truffaut, Malle, Chabrol e outros passaram anos filmando variações desse enredo. Para eles, nada era mais moderno do que esquecer a Noite de São Bartolomeu ou a Queda da Bastilha e filmar pequenas aventuras de submundo à maneira norte-americana. Há toda uma ruptura sociológica e uma queda-de-braço cultural por trás disso.
O filme é pouco conhecido, mas duas sequências ficaram famosas. Uma é a da coreografia executada com displicência de cinema-verdade pelo trio de atores, tendo Anna Karina devastadoramente charmosa, de saia tartan, pulôver escuro e o chapéu de Sami Frey na cabeça. Esta dança (dizem) foi citada em Pulp Fiction de Tarantino, cuja produtora, aliás, chama-se A Band Apart em homenagem a este filme. (A cena pode ser vista no YouTube). A outra cena famosa é a dos três atores correndo pelas galerias do Louvre, tentando bater o recorde de um turista americano, que (dizem eles) viu o Museu inteiro em 9 minutos e 45 segundos. Esta cena foi citada e reconstituída por Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores.
Uma terceira cena (que eu desconhecia até ver o filme) mostra o trio tentando fazer um minuto de silêncio. A trilha sonora é emudecida durante 35 segundos até que um deles se levanta da mesa do bar, dizendo “chega!”. Bergman retomaria alguns anos depois este desafio, em A Hora do Lobo, mostrando (“na sucessividade dos segundos”, como dizia Augusto dos Anjos) um minuto inteiro de Max von Sydow olhando um relógio e Liv Ullman olhando o rosto de Max von Sydow. (Para, sem mais do que isto, falar resmas de textos sobre o Amor, a Loucura e a Morte.)
O cinema de Godard é como a música de Philip Glass, a poesia de e. e. cummings ou a pintura de Edward Hopper. Há quem ame e quem deteste. Para os que nem-uma-coisa-nem-outra, é um documento inquietante de como um cinema feito por cinéfilos acaba se tornando, 45 anos depois, um cinema menos referencial e menos cheio de citações do que o cinema comercial de hoje. O encanto desses filmes, em 1964, era sua intelectualidade, sua ousadia vanguardista. Hoje, seu encanto é a pureza do seu olhar, que parece nunca ter sido corrompido por uma tecnologia, um Festival, um borderô.
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